A poesia prega-nos partidas. Para onde quer que nos viremos, lá surge ela num rosto até então desconhecido. E quando menos esperamos, um novo nome se apresenta em línguas que não dominamos. Há as traduções, as versões, as traições... felizmente. De outra forma, não me seria possível contactar com os universos de Hans Børli, Erling Kittelsen e, mais recentemente, Olav Håkonson Hauge (1908-1994). Dos três, o segundo foi aquele que menos me tocou. Por detrás das suas palavras supus um conhecimento que não tenho. É quase impossível entendê-lo sem antes ter lido muita da literatura invocada nos seus versos. Mas Børli e Hauge aproximam-se com outra facilidade do que julgo ser uma leitura legítima, a de quem por simplesmente viver pode deixar-se apanhar pelas breves reflexões desenhadas no poema. São poetas concentrados na literatura universal da vida. Como anteriormente referi, Hans Børli foi lenhador durante muito tempo. Curiosamente, o mister de Olav H. Hauge era a jardinagem. Nasceu e viveu toda a vida em Ulvik, sendo esta, segundo quem sabe, uma das regiões mais belas da Noruega. A antologia organizada e traduzida para inglês pelo poeta escocês Robin Fulton (1937), recolhe parte da produção poética de Hauge cultivada entre 1946 e 1980. Não é por acaso que aplico aqui o verbo cultivar. Estes são, de facto, poemas semeados diariamente - «I want to write a poem every day, / every day. / That should be easy enough» (p. 105) -, extraídos de um contacto permanente com a natureza onde adquirem forma como pequenos registos de uma passagem. Leaf-Huts and Snow-Houses contempla sete dos seus livros, o primeiro dos quais, intitulado Embers in the Ashes (Glør i oska), foi publicado em 1946. Os poemas de Hauge são curtos, lembrando por vezes alguma da poesia oriental que o poeta norueguês tanto admirava. Evocam, entre outros, poetas tais como Ch’ü Yüan, Li Po, T’ao Ch’ien, Lu Chi e Bashô, embora a poesia do norueguês resista a comparações com qualquer um deles por ser inerente ao seu próprio tempo e ao seu próprio espaço. Deste modo, se por vezes parece contemplativo, Hauge logo nos surpreende com um singelo rasgo de ironia ou uma imagem mais melancólica e desencantada. Para dentro dos poemas chama tanto a fauna como a flora locais, dando uma especial atenção aos ciclos que marcam a passagem do tempo. Uma imagem recorrente é a do ramo, ora desnudado, ora em flor, um ramo seco caído no chão ou o ramo que simplesmente precisa de ser podado. Este corpo surge como uma espécie de extensão da vida humana no mundo natural, reflecte, à maneira de exemplo, a fragilidade dos homens e a efemeridade da vida. Os rios, as árvores, a neve, o gelo, os penhascos e desfiladeiros, as montanhas, o fogo e as rochas, o mar, o vento, os fiordes, são detalhes da paisagem que sugerem reflexões muito precisas e concisas sobre o humilíssimo lugar do homem na vastidão do mundo. A própria opção pelo poema curto, muitas vezes numa verticalidade que lembra o tronco de uma árvore, ou o caule de uma planta, remete para esta relação com o mundo natural onde o poeta não busca tanto descrever a paisagem como acaba por se descobrir a si próprio naquilo que a paisagem lhe revela de si. Olav H. Hauge, também ele tradutor de poetas, aos quais dedicou poemas (Bertolt Brecht, Georg Trakl, William Blake, Gérard de Nerval, Paul Celan, Guillevic…), tinha da poesia uma concepção optimista, tomando-a por uma espécie de refúgio que o isolava (não direi protegia) das ameaças exteriores, as quais, como sabemos, são quase sempre humanas. Terminarei com um dos seus poemas mais emblemáticos, onde esta concepção se materializa num tom tão nostálgico quão esclarecedor:
CHOUPANAS E CASAS DE NEVE
Não me exigem muito
estes versos, apenas
algumas palavras amontoadas
ao acaso.
Penso
porém
que é agradável
escrevê-los, por
breves instantes
tenho algo como uma casa.
Lembro-me das choupanas
que construíamos
quando éramos pequenos:
entramos e sentamo-nos
a escutar a chuva,
sentimo-nos sós na floresta,
pingos no teu nariz
e no teu cabelo –
Ou casas de neve pelo Natal,
entramos e
fechamos o buraco com uma saca,
acendemos a candeia e por lá ficamos
nas noites frias.
Olav H. Hauge, in Leaf-Huts and Snow-Houses, trad. Robin Fulton, Anvil Press Poetry, 2010.
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