Numa carta a Jorge de Sena, com a data de 10 de Junho de 1963, Sophia queixa-se dos problemas familiares, da exaustão, das tarefas domésticas esgotantes. Conta que começou a escrever um poema, mas foi interrompida e desistiu. Tentou novamente, mas estava cansada demais. Só no dia seguinte, depois de deixar a cozinheira na praça e ter fugido para um café, é que finalmente o poema lhe saiu. Lugares de refúgio, os cafés são as capelas dos poetas. De Bocage a Pessoa, deste aos surrealistas, o que não falta na poesia portuguesa é a celebração do café enquanto espaço onde a humanidade se concentra e o poema nasce.
Joana Serrado (n. 1979) evoca Cesariny (e Sá-Carneiro) à entrada do seu Guarany (4Águas editora, Outubro de 2012), título que remete para um café histórico da cidade do Porto. A poesia de Cesariny tem uma relação mitológica com os cafés, pelo que os versos de autografia (Pena Capital) reproduzidos em epígrafe são como que uma divisa na “epopeia dos cafés” levada a cabo por Joana Serrado. Diga-se, antes de mais, que não estamos na presença de uma poesia conformada nem de uma voz convencional. Neste livro, a autora extrema o que os títulos anteriores indiciavam: uma atitude distante do facilitismo rítmico e do registo prosaico, de urbanas depressões empasteladas, que caracteriza muita da poesia portuguesa corrente.
A estrutura enigmática do índice baralha a lógica, mas não desordena as páginas. Oferece-lhes, pelo contrário, uma cadência que transforma Guarany numa peça musical (não é por acaso que o livro termina com um caderno de música onde as notas são substituídas por palavras manuscritas, opção que resulta, igualmente, numa das mais expressivas “homenagens” a Cesariny feitas por um poeta da chamada nova geração). No entanto, o mote introduzido pela autografia de Cesariny, seguido da autonecrografia de Serrado, manifesta uma degeneração do espaço e do tempo a que não é possível ficar alheio.
Cesariny pergunta: «Onde está o homem que era um chevrolet / casado com uma vírgula de amianto?». Joana lamenta: «Dói-me a cidade que escolhi para morrer. / Não tenho lugar para escrever um poema de amor». Entre a dúvida de um e o lamento do outro instala-se um diálogo desconfortável, representado pela imagem do café fechado para obras, fechado para férias, fechado ao domingo, indefinidamente fechado. Esta imagem desoladora é a da suspensão de um lugar (o tal refúgio) onde o poema (o tal poema) seria possível, pelo que Guarany questiona, na sua essência, as possibilidades da poesia e, por consequência, a possibilidade do amor.
Assistiremos, então, a uma viagem interior com paragem em cidades facilmente identificáveis no percurso biográfico da autora. Nascida em Aveiro, estudou em Coimbra, Porto, Berlim e Groningen. Vive em Oslo. De uma nostalgia romântica a um discurso escatológico, sobretudo quando se refere aos tempos de Coimbra, esta digressão (talvez fosse mais correcto chamar-lhe peregrinação) em busca de um lugar que torne possível o poema de amor alterna com aforismos sobre as Maneiras de Amar da mística Hadewijch de Antuérpia (ou Hadewijch de Brabante). A busca coincide com um mergulho no caos das memórias, das sensações, das experiências, mas emerge, misticamente, na simplicidade de uma caligrafia infantil, com a reprodução de um testamento escrito quando a autora tinha apenas 10 anos de idade.
Há neste percurso, obviamente, a presunção de uma chegada que, já agora, vislumbramos frequentemente na poesia de Herberto ou na prosa de Llansol, a chegada a uma morada reveladora que aproxima a mundanidade à mística, esbate fronteiras, liberta a linguagem e possibilita o ser. Mas esta chegada é sempre uma nova partida, pois corresponde a um processo infindo de aprendizagem onde a escrita ganha a forma acidental da própria vida:
tus dedos en mis vísceras
Doem-me os cafés da minha cidade
os que fecham ao domingo
os que fecham para obras
os que fecham para férias
os que fecham indefinidamente
os que fecham por fechar
os que não precisam de fechar e se trespassam trespassando-nos.
Sei que vou morrer com eles
sei que vou morrer sem eles.
Sei que o teu corpo é um corpo perecível
corruptível.
Sinto a tua morte nos meus ossos
e não consigo salvar-te.
Sinto a tua frigidez
a tua alvura apodrecida
a maneira como os teus maxilares se adormecem um no outro.
Só o perfume das violetas que brotam do teu corpo me faz respirar.
3 comentários:
tão belo...o contraste da anáfora que se repete com a mesma cadência, quebrado na dissonância disruptiva dos dois últimos versos. Gosto muito.
Vale mesmo a pena descobrir este livro.
gostei das tuas palavras e do "cheirinho" da poesia da Joana.
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