Numa caixa de comentários abaixo, um leitor argumentava
que para passar a ser um direito fundamental o suicídio seria a negação de
todos os outros direitos fundamentais. Não me interessa discutir a questão em
si. É uma falácia muito comum, esta de supor que os direitos fundamentais podem
colidir uns com os outros. Sendo a liberdade um direito fundamental, em que é
que a prática do suicídio nega esse direito? Genericamente falando, estamos
perante um tipo de argumentação que faz negar uma realidade universalizando o
seu oposto. Ou seja, se tudo for dia não poderá haver noite. E mesmo que
assumamos que tudo é dia e noite, o crepúsculo não existe. Por aí fora. Isto remete-me
para uma constatação talvez irrelevante de um ponto de vista filosófico, mas
muito mais viva no contexto da vida prática. Refiro-me ao problema
da generalização da silly season.
Os portugueses deixaram de ter uma silly
season, tal é o prolongamento da parvoeira ao longo de todas as estações. Deste
modo, o Verão português perdeu uma das suas principais características. A novela
das autárquicas, com candidatos que os tribunais ora rejeitam, ora admitem, é
mais um inequívoco exemplo da essência silly que tomou conta da nação. Mas não
é só os autarcas históricos que julgavam poder tornar-se dinossáurios
praticando um ligeiro nomadismo edílico, saltando do município X para o
município Y, que torna a coisa caricata. As dificuldades que os partidos vêm
sentindo na constituição de listas é de uma eloquência atroz. De norte a sul do país, o que vamos
encontrando é os diversos partidos, sem excepção, a suportarem/apoiarem
candidaturas de quaisquer peralvilhos só para poderem afirmar que concorreram
em todas as sedes de município. Se estendermos a passadeira às freguesias,
corremos o risco de entrar num circo para o qual não estamos preparados.
Opondo-se
aos partidos, os movimentos cívicos de gente mais ou menos independente transformam-se
em bons partidos para gente que nunca encontrou nos seus clubes lugar na equipa
principal. É assim o Portugal das novas oportunidades. Ali encontram oportunidade de saltar do banco para o terreno de
jogo, deparando-se, obviamente, com as dificuldades com que qualquer equipa da
segunda divisão se depara quando tem de defrontar um clube da primeira liga. A
hostilidade dos adeptos rivais é a mais evidente destas dificuldades, metáfora
futebolística que cai aqui que nem ginjas pois no Portugal profundo os partidos
permanecem na cabeça dos poucos eleitores que ainda existem, os chamados fiéis,
com o estatuto dos clubes. Vestida a camisola, é para a vida. Aconteça o que
acontecer. Excepto se acontecer o que muitas vezes acontece, falhar o tacho e,
com isso, o desapontamento nos empurrar para outras instâncias.
Também há muito
disso a que antigamente se chamava
vira-casacas, moinhos que se movem pelos ventos dos interesses meramente
pessoais aceitando convites para listas onde seria improvável encontrá-los não
fosse já tudo se ter tornado provável, possível, praticável neste país onde passámos a poder ver
todos os dias, como diz o professor Marcelo, porcos a andar de bicicleta. Portanto,
chegámos àquele ponto de surrealidade que confere as nossas piores
expectativas: nas bases, pouco mudou. E diz-nos a lógica, por via de raciocínio
indutivo, que pouco mudará. Os desinteressados da política continuarão a fazer
cócegas ao smartphone, os insatisfeitos dos partidos reunir-se-ão em movimentos
com estruturas que não fazem senão retrilhar os vícios dos próprios partidos e
a malta do cartão continuará a dar lustro aos líderes na esperança dos amanhãs
que cantam.
Se me questionarem sobre uma solução para isto, eu poderei
descansar os meus bons interlocutores dizendo-lhes que não é só por cá que
a estupidificação das massas ganhou terreno. Enfim, sugiro a quem possa que vá
ver as panelas da Joana Vasconcelos (a minha mãe foi e afiança que são de tal
qualidade que até mete pena vê-las ali inutilizadas) ou, em alternativa, a da
magnífica Cecilia Giménez, restauradora de 80 e tal
anos que, na inocência da sua arte, conseguiu com o restauro de um Ecce Homo, ao nível do melhor Crivelli, oferecer-nos
o mais fiel retrato da actualidade que arte alguma poderia oferecer-nos. Estou mesmo
convencido que daqui a quinhentos anos só mesmo aquele restauro poderá
representar-nos condignamente nas galerias do Império Galáctico.
6 comentários:
A liberdade de escolha não me parece afectada no suicidio. Preocupa-me o que por vezes faz do suicidio uma opção mas, isso é outra conversa...
a classe politica está cada vez mais silly...
Henrique, da minha parte a gratidão é tanta que enjoa. O restauro de Cecilia é sublime e de longe mais higiénico.
Tétisq, para a classe política o suicídio devia ter ajudas de custo.
Marina, de acordo. Sublime Cecília.
Passando ao lado da questão do suicídio (sendo "maior e vacinado..."); e fixando-me nas candidaturas autárquicas, concordo consigo quanto à arregimentação de candidatos e à sua 'pobreza', o que nos impõe a toda(o)s um acrescido dever de participação e exigência, e não ficar-mo-nos pela lamentação.
"um acrescido dever de participação e exigência"
Há muitas formas de participar. E todas elas advêm do grau de exigência que temos para com nós próprios.
Caro Henrique (se mo permite), se, porventura, lhe ocorreu que haveria qualquer destinatário concreto, nomeadamente o bloguista, no comentário anterior, tal não era, de todo, o fito; falava de nós (portugueses), espécie de povo atreito à lamentação auto-complacente e, no caso particular pelo que me é dado a ler, tomara a muitos de nós ter a participação cívica (muito longe de se esgotar em participações partidárias e eleitorais) e o entendimento do que nos rodeia que o Henrique aqui nos deixa.
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