quinta-feira, 15 de agosto de 2013

SILLY SEASON

Numa caixa de comentários abaixo, um leitor argumentava que para passar a ser um direito fundamental o suicídio seria a negação de todos os outros direitos fundamentais. Não me interessa discutir a questão em si. É uma falácia muito comum, esta de supor que os direitos fundamentais podem colidir uns com os outros. Sendo a liberdade um direito fundamental, em que é que a prática do suicídio nega esse direito? Genericamente falando, estamos perante um tipo de argumentação que faz negar uma realidade universalizando o seu oposto. Ou seja, se tudo for dia não poderá haver noite. E mesmo que assumamos que tudo é dia e noite, o crepúsculo não existe. Por aí fora. Isto remete-me para uma constatação talvez irrelevante de um ponto de vista filosófico, mas muito mais viva no contexto da vida prática. Refiro-me ao problema da generalização da silly season.
 
Os portugueses deixaram de ter uma silly season, tal é o prolongamento da parvoeira ao longo de todas as estações. Deste modo, o Verão português perdeu uma das suas principais características. A novela das autárquicas, com candidatos que os tribunais ora rejeitam, ora admitem, é mais um inequívoco exemplo da essência silly que tomou conta da nação. Mas não é só os autarcas históricos que julgavam poder tornar-se dinossáurios praticando um ligeiro nomadismo edílico, saltando do município X para o município Y, que torna a coisa caricata. As dificuldades que os partidos vêm sentindo na constituição de listas é de uma eloquência atroz.  De norte a sul do país, o que vamos encontrando é os diversos partidos, sem excepção, a suportarem/apoiarem candidaturas de quaisquer peralvilhos só para poderem afirmar que concorreram em todas as sedes de município. Se estendermos a passadeira às freguesias, corremos o risco de entrar num circo para o qual não estamos preparados.
 
Opondo-se aos partidos, os movimentos cívicos de gente mais ou menos independente transformam-se em bons partidos para gente que nunca encontrou nos seus clubes lugar na equipa principal. É assim o Portugal das novas oportunidades. Ali encontram oportunidade de saltar do banco para o terreno de jogo, deparando-se, obviamente, com as dificuldades com que qualquer equipa da segunda divisão se depara quando tem de defrontar um clube da primeira liga. A hostilidade dos adeptos rivais é a mais evidente destas dificuldades, metáfora futebolística que cai aqui que nem ginjas pois no Portugal profundo os partidos permanecem na cabeça dos poucos eleitores que ainda existem, os chamados fiéis, com o estatuto dos clubes. Vestida a camisola, é para a vida. Aconteça o que acontecer. Excepto se acontecer o que muitas vezes acontece, falhar o tacho e, com isso, o desapontamento nos empurrar para outras instâncias.
 
Também há muito disso a que antigamente se chamava  vira-casacas, moinhos que se movem pelos ventos dos interesses meramente pessoais aceitando convites para listas onde seria improvável encontrá-los não fosse já tudo se ter tornado provável, possível, praticável neste país onde passámos a poder ver todos os dias, como diz o professor Marcelo, porcos a andar de bicicleta. Portanto, chegámos àquele ponto de surrealidade que confere as nossas piores expectativas: nas bases, pouco mudou. E diz-nos a lógica, por via de raciocínio indutivo, que pouco mudará. Os desinteressados da política continuarão a fazer cócegas ao smartphone, os insatisfeitos dos partidos reunir-se-ão em movimentos com estruturas que não fazem senão retrilhar os vícios dos próprios partidos e a malta do cartão continuará a dar lustro aos líderes na esperança dos amanhãs que cantam.
 
Se me questionarem sobre uma solução para isto, eu poderei descansar os meus bons interlocutores dizendo-lhes que não é só por cá que a estupidificação das massas ganhou terreno. Enfim, sugiro a quem possa que vá ver as panelas da Joana Vasconcelos (a minha mãe foi e afiança que são de tal qualidade que até mete pena vê-las ali inutilizadas) ou, em alternativa, a da magnífica Cecilia Giménez, restauradora de 80 e tal anos que, na inocência da sua arte, conseguiu com o restauro de um Ecce Homo, ao nível do melhor Crivelli, oferecer-nos o mais fiel retrato da actualidade que arte alguma poderia oferecer-nos. Estou mesmo convencido que daqui a quinhentos anos só mesmo aquele restauro poderá representar-nos condignamente nas galerias do Império Galáctico.

6 comentários:

Tétisq disse...

A liberdade de escolha não me parece afectada no suicidio. Preocupa-me o que por vezes faz do suicidio uma opção mas, isso é outra conversa...
a classe politica está cada vez mais silly...

Marina Tadeu disse...

Henrique, da minha parte a gratidão é tanta que enjoa. O restauro de Cecilia é sublime e de longe mais higiénico.

hmbf disse...

Tétisq, para a classe política o suicídio devia ter ajudas de custo.

Marina, de acordo. Sublime Cecília.

Paulo Costa disse...

Passando ao lado da questão do suicídio (sendo "maior e vacinado..."); e fixando-me nas candidaturas autárquicas, concordo consigo quanto à arregimentação de candidatos e à sua 'pobreza', o que nos impõe a toda(o)s um acrescido dever de participação e exigência, e não ficar-mo-nos pela lamentação.

hmbf disse...

"um acrescido dever de participação e exigência"

Há muitas formas de participar. E todas elas advêm do grau de exigência que temos para com nós próprios.

Paulo Costa disse...

Caro Henrique (se mo permite), se, porventura, lhe ocorreu que haveria qualquer destinatário concreto, nomeadamente o bloguista, no comentário anterior, tal não era, de todo, o fito; falava de nós (portugueses), espécie de povo atreito à lamentação auto-complacente e, no caso particular pelo que me é dado a ler, tomara a muitos de nós ter a participação cívica (muito longe de se esgotar em participações partidárias e eleitorais) e o entendimento do que nos rodeia que o Henrique aqui nos deixa.