No caso português, a relação entre música e poesia
conheceu um momento especial com a publicação do livro Arte de Música (1968).
No posfácio que acompanha essa obra em Poesia II (1988), Jorge de Sena (n. 1919
– m. 1978) afirma que «as formas de expressão podem sobrepor-se e até fundir-se
em algumas áreas de acção, mas não podem substituir-se em si mesmas, umas às
outras». Esta regra aplica-se tanto a esse livro como a outros que, depois desse,
procuraram estabelecer associações, por mera evocação ou sugestão, entre a
música e a poesia. Livros como Música Antológica & Onze Cidades (1997), de
Rui Pires Cabral (n. 1967), ou O Bosque Cintilante (2008), de Amadeu Baptistia
(n. 1953), são bons exemplos de uma poesia onde a música aparece como elemento
configurador da memória ou como força sugestiva de imagens capturadas pela
palavra. Com Compositores do Período Barroco (Deriva, Junho de 2013), José
Ricardo Nunes (n. 1964) acrescenta um novo capítulo a esta relação. Se aqui a
música é relevante, menos não é o contexto biográfico dos seus criadores. O próprio
título do livro distancia-se de uma conjuntura exclusivamente poética, remetendo-nos
para um formato enciclopédico que os poemas irão desmentir. Quer pela
sua extensão – nada vulgar para um livro de poesia nos tempos que correm -,
quer pela própria estrutura dos poemas, este não é um livro fácil. Os inúmeros
compositores invocados trazem para os poemas uma imensidão de referências a
lugares, épocas, criações, apontamentos biográficos que por vezes se cruzam,
outras vezes interpelam uma segunda pessoa à qual se dirigem e que nos parece
ser o autor do livro. A referência a um Guia, onde a posteridade de cada um dos
compositores ficou fixada a partir de meia dúzia de linhas capazes de resumir
toda uma vida, transforma este livro num Guia alternativo. Um Guia poético, que
a própria disposição dos títulos reforça. Ora, o que pode ser um Guia poético?
É um Guia que sugere uma dinâmica difícil de determinar entre as vidas dos
compositores e a do autor do livro, misturando-se este com aqueles num processo
de estilhaçamento da identidade que se resolve, afinal, em algumas ideias muito
claras sobre o sentido da vida, o problema da morte, as costuras da existência.
Esta dinâmica torna-se evidente em alguns momentos especialmente curiosos,
momentos onde poemas evocativos de séculos passados se deixam contaminar por
elementos actuais. Assim, no poema Bernier, Nicolas (1665-1734) vamos encontrar
uma bomba de gasolina, no poema Clérambault, Louis-Nicolas (1676-1749) há uma
referência ao youtube, no poema Mondonville, Jean-Joseph Cassanéa de
(1711-1772) fala-se de uma BASF, no poema Caldara, Antonio (?1671-1736) aparecem
ansiolíticos, no poema Purcell, Henry (1659-1695) evoca-se Klaus Nomi… E depois
encontramos poemas esclarecedores como este:
BULL, John
(?1562/1563-1628)
Penduraram-me na Biblioteca
e daqui assisto à passagem
do tempo. Crês ser comparável,
a minha situação, com a tua viagem diária
pela auto-estrada a caminho de Lisboa,
ainda que a desordem interior
ou a sistemática dificuldade em me dominar
modelem uma pessoa menos afim do que supunhas.
Asseguro-te que só em transgressão
podes inverter a marcha, acompanhar-me.
Orgulhas-te em conduzir uma máquina potente.
Alarga-se o espaço, a paisagem perde
nitidez vencida a distância, elementos
indistintos na vastidão. Sim, concedo
que o teu futuro se assemelhe ao meu
passado. Todavia, devo avisar-te
que a cada ano chegam novos estudantes,
sempre com a mesma idade e o receio
de serem subitamente ultrapassados.
Talvez mais adiante te depares com um
deles, desfeito numa curva ou reduzindo,
como tu, para pagar portagem.
O que este poema, como muitos outros do mesmo livro,
senão todo o livro, torna evidente é uma espécie de monocórdia existencial que
a arte, com suas exuberâncias, nuances, guerras, procura disfarçar. Mais do que
as preocupações com a posteridade, mais do que um lugar a ocupar na história, o
índice “interminável” de compositores do período barroco revela uma agonia
permanente do homem no regaço do tempo. Há 600, 500, 300 anos, outros homens
sentiam o que nós sentimos, tinham as mesmas frustrações, o mesmo desassossego,
nutriam a mesma ambição, tornando muito provável que daqui a 300, 500, 600 anos
outros homens venham a sentir exactamente o mesmo. Porque é de universalidade
que estamos a falar, uma universalidade humana que a transformação da paisagem
pode camuflar mas a história desvela. O
destino eventual que alguns versos sugerem, desde logo os reproduzidos na
contracapa - «Depois até parece fácil, / que não podia ser / doutra maneira, já
estava / escrito» -, não é necessariamente um fatalismo. É antes a guerra do
criador contra o tempo, a guerra do compositor, seja ele do período barroco ou
um simples compositor de poemas na medíocre actualidade portuguesa, uma guerra
que o compositor sabe à partida perdida mas, por um qualquer impulso absurdo
difícil de explicar, não se impede de travar. Só assim consigo compreender, se
consigo, um outro pequeno grande poema como este:
PROVENZALE, Francesco
(1624-1704)
Aqui nos vamos
recreando a recriar
infâncias soturnas
ou felizes, rapazes
que acumulam faltas, homens
subindo na vida, imparáveis
descendo, velhos
de relance a relembrar, sopesar,
até novo golpe de vento
dar outra disposição
ao pó
e recomeçarmos.
1 comentário:
Excelente!!!
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