terça-feira, 29 de outubro de 2013

FIGURAS


Wojciech Fangor, Postaci
 
Dizem-nos que vivemos acima das nossas possibilidades. Por isso cortam-nos no salário e aumentam a idade da reforma. Acusam-nos de privilégios que nunca tivemos, metendo na gaveta “direitos adquiridos” porventura supérfluos. Retêm o subsídio de férias e o décimo terceiro mês, flexibilizando despedimentos, rasurando feriados, aumentando impostos, diminuindo o tempo de férias. Queixam-se de uma população envelhecida, mas nada fazem em prol de uma renovação demográfica. Antes roubam às famílias a estabilidade que as sustenta, impossibilitando o convívio, a presença, a paz. As pessoas são quem menos conta na ditadura dos mercados, disfarçada de democracia por nos ser concedido o privilégio de assegurar a alternância democrática de quatro em quatro anos. A justiça, mais facilmente condena um ladrão de galinhas do que um criminoso de colarinho branco. Agravam-se assimetrias, a miséria passa a ser um dano colateral, importa garantir a saúde financeira dos bancos e as mordomias dos seus administradores. Porque os exemplos vêm de cima, temos uma presidente da Assembleia da República reformada aos quarenta e dois anos. Leva para casa 7255€ de pensão por dez anos de trabalho como juíza do Tribunal Constitucional, mais ajudas de custo no valor de 2133€. Num país onde o salário mínimo é 485€, a presidente ganha num mês o que a maioria dos trabalhadores precisa de um ano para receber. É só um exemplo de imensos que poderiam ser dados. Tudo isto é público, tudo isto círcula nas redes sociais, aparece nos jornais, vem à baila em debates difundidos na rádio e na televisão. Mas está tudo bem, não podemos pensar que não esteja tudo bem. Como podemos justificar que está mal se mais facilmente os portugueses se envolvem à pancada por causa de um jogo de futebol do que por este estado de coisas? Como podemos sequer supor que a injustiça social seja um facto se mais facilmente os portugueses se excitam com tricas domésticas entre figuras públicas do que com o assalto de que são diariamente vítimas? Facto indesmentível é a decadência da nação. O povo volta-se para onde quer. Se prefere o futebol, Fátima e fado a invadir a escadaria do parlamento reivindicando direitos, justiça, equidade, é porque nada tem para si tanto valor quanto o futebol, Fátima e fado. A crise actual afecta a chamada “classe média”, olhada com inveja e desprezo pelos excluídos. Quem nada tem enraivece-se contra quem pouco tem. O agravamento das assimetrias resulta, desta forma, numa espécie de justiça para com as classes menos abastadas, que agora se vêem na companhia de muito mais gente enquanto num topo inacessível os verdadeiros privilegiados do país cantam de galo e cagam para as galinhas atiradas para a base da capoeira.  O arrivismo que recrudesce é proporcional ao caciquismo que se instala, com suas oligarquias cada vez mais protegidas por um poder económico absolutamente desligado da sociedade. O trabalhador só existe porque o empresário garante a sua existência, é esta a mentalidade de quem manda. E o trabalhador aceita silenciosamente essa mentalidade, curva-se, não diz que sim nem que não, encolhe os ombros, mete as mãos nos bolsos e segue para o local de trabalho remoendo a raiva com sua mais ou menos apreciável competência. Depois cai-lhe o Estado em cima, como se não bastasse já lhe ter caído em cima o patronato, e cai-lhe também em cima uma justiça sempre mais célere a resolver os assuntos do Estado do que as queixas das pessoas. As queixas daqueles que ainda se queixam, porque a maioria já interiorizou não valer a pena o esforço. Conformam-se com a sua condição inferior e desprotegida como se vivessem num sistema de castas. Corrijo, não é como se vivessem. Vivem mesmo. Vivem num sistema de castas organizado em função de apelidos e laços familiares, credenciais valiosíssimas nesta sociedade onde o conhecimento e a competência não são determinados pelo mérito pessoal mas recebem-se de herança e por consanguinidade. Não obstante, está tudo bem, está tudo óptimo, ninguém parece incomodar-se com o assunto. Pelo menos não tanto quanto incomoda a vida doméstica de um professor de filosofia e de uma conhecida apresentadora de programas de entretenimento.

11 comentários:

MJLF disse...

Tenho dúvidas em relação ao seguinte:"Vivem num sistema de castas organizado em função de apelidos e laços familiares, credenciais valiosíssimas nesta sociedade onde o conhecimento e a competência não são determinados pelo mérito pessoal mas recebem-se de herança e por consanguinidade." Ora, a maior parte dos politicos actais, pensa bem, qual a origem deles? Dias loureiro? Duarte Lima? E outros bandidos? E os actuais empresários que são amigos do seus amigos? atenção! Tens a certeza sobre quais são as actuais elites portuguesas e seu funcionamento? Alguns vêm de famílias tradicionais, outros subiram a pulso e tinham origens humildes. Como Cavaco Silva.

hmbf disse...

Maria João, isso é o fogo de vista deixado pelo cavaquistão. Começa a escavar no mundo empresarial e logo verás. Olha para os quadros das empresas, verificarás uma série de coincidências marcantes. Olha para as empresas públicas, autênticos viveiros de jótas que herdaram das respetivas famílias lugares, posição e estatuto. Olha para as autarquias e para a forma como aí se distribuem empregos em função de proximidades e de favores. Enfim, é todo um mundo a explorar que, de restos, "Os Donos de Portugal" de algum modo deixaram a claro. Depois podes ler também os "Privilegiados". São duas leituras muito recomendáveis.

hmbf disse...

Convém rever:


http://www.donosdeportugal.net/

MJLF disse...

Conheço muito bem o documentário, o que te estou a chamar a atenção é que a elite do estado novo foi alargada em 38 anos de democracia: muitos voltaram ao poder na altura do cavaquismo e emergiram muitos que são novos. Aquilo que te estou a chamar a atenção é que o poder não faz bem nem aos antigos ricos nem aos novos. O compadrio alargou-se. Também estou agora a lembrar-me de casos de alguns senhores que houve alguns senhores que deixaram de ser comunistas, e depois se tornaram corruptos,como afirmou o Álvaro Cunhal, como Judas da câmara de Cacais, ou o José Ernesto, que esteve pelo PS em dois mandatos na câmara de Évora. Exitem pessoas sérias e honestas neste país, são sempre excepções e estão para além das classes sociais a que pertencem.

hmbf disse...

Nesse caso, não percebo a dúvida inicial. Até porque antes fiz questão de referir: «O arrivismo que recrudesce é proporcional ao caciquismo que se instala, com suas oligarquias cada vez mais protegidas por um poder económico absolutamente desligado da sociedade.» Quanto às excepções de seriedade e honestidade, nada a dizer. São de facto excepções.

MJLF disse...

Estou aqui a chamar-te a atenção para algumas generalizações, o mundo não é a preto e branco ;)

MJLF disse...

Vamos voltar a isto:"num sistema de castas organizado em função de apelidos e laços familiares, credenciais valiosíssimas nesta sociedade onde o conhecimento e a competência não são determinados pelo mérito pessoal mas recebem-se de herança e por consanguinidade." O que liga também o pessoal que está no poder neste país são os partidos onde estão, nomeadamente, a corja que está no PS, PSD e PP. E as trocas e baldrocas entre eles,os favores que prestam. A principal familia será o compadrio partidário, não tem a ver com o sangue. Já agora, Passos Coelho é um retornado que veio de Angola, tal como Miguel Relvas. O que pensar sobre isso?

hmbf disse...

O mundo, ao contrário do que eu gostaria, revela-se cada vez mais a preto e branco. Sempre apreciei de zonas crepúsculares e de intersepções, mas a realidade contradiz-me os gostos frequentemente. Pedro Passos Coelho é filho de um médico e de uma enfermeira, gente que teve a rara oportunidade de se formar no "ancien régime" e fez vida nas ex-colónias. Os tiques colonialistas são evidentes, o desprezo pelos mais fracos e desprotegidos, uma insensibilidade crónica (há um vídeo revelador numa acção de campanha, quando se dirige a uma mulher que o confronta e lhe diz que vá pegar numa enxada; terá ele alguma vez pegado numa enxada?). Parece-me que te estás a referir, nos comentários anteriores, aos Julien Sorel cá do burgo, gente que veio das cidades "mais rurais" para a capital com intenções claramente arrivistas. Mas esses o sistema encarrega-se de se servir deles ou de lhes fazer a folha (como têm feito ao Duarte Lima). Essa corja partidária que salta das jótas para os partidos destes para cargos públicos sem nunca ter trabalhado na vida, sem nunca ter sentido ou passado por aquilo que passa quem trabalha, são os "pequenos estalines" de um regime organizado em torno de meia dúzia de apelidos. Isto parece-me inegável, é algo que o documentário acima referido torna claro. O Estado serve esses Apelidos oferecendo aos filhos do Estado bons ventos e bons casamentos.Termino com duas notícias felizes sobre o casamento de Miguel Relvas. É só ler:

http://www.vidas.xl.pt/a_ferver/detalhe/casamento_casal_faz_festa_discreta.html


http://caras.sapo.pt/famosos/2013/10/26/miguel-relvas-e-marta-sousa-casaram-se

MJLF disse...

pronto, as questões que levantei são para não te deixar a falar sozinho, como te tinha prometido. e vou continuar a sempre a levantar questões ;) saúde e bjs para toda a tribo

MJLF disse...

E o Dias Loureiro, quando é que lhe fazem a folha?

hmbf disse...

Não fazem. É um protegido do Cavaco. Só lhe farão a folha quando fizerem ao Cavaco.