segunda-feira, 4 de novembro de 2013

HOLISMO


Uma reportagem sobre espiritualidade. Espíritas, pessoas que abraçam árvores, praticantes de yoga, caminhantes. Achei tudo deveras positivo e saudável, pese embora a minha visão holística do mundo obrigar a outras contas. Daí que ao dirigir-me a um MB para pagar o seguro do carro e uma multa por atraso no pagamento do IMV, tenha tentado resistir estoicamente ao negativismo acariciando o papel das notificações como se fossem partes do meu corpo. Quem me observasse naquele momento poderia julgar-me rebarbado, tal era a satisfação com que acariciava a lisura daqueles papéis. Segui para o trabalho com um sorriso nos lábios, irradiando positividade e transmitindo ao mundo uma energia ao mesmo tempo translúcida e quente. Desconfio que se notasse nos meus olhos o conforto que o niilismo dos dias teima em nos negar. Fui então abordado por uma senhora que havia encontrado uma carteira perdida num banco de jardim. Terá aberto a carteira e reparado num cartão da loja onde trabalho. Perguntou-me se não lhe poderia passar os dados pessoais daquele cartão, ao que respondi negativamente, com um sorriso nos lábios, respeitando o direito à confidencialidade dos clientes. Sugeri à senhora em causa que entregasse a carteira na polícia, ao que ela me respondeu com indisfarçável desagrado comentando saber muito bem qual o funcionamento da polícia portuguesa nestas situações. E rematou: enfim, para alguma coisa servem os caixotes do lixo. Fiquei o resto do dia a pensar naquele remate, no que pensaria ela se tivesse sido eu, por exemplo, a encontrar a sua carteira perdida num banco do jardim. Preferiria que a entregasse na polícia, independentemente dos procedimentos, ou que a lançasse num caixote do lixo? Perante tal dúvida, a minha existência estremeceu. Foi-se-me a alegria de estar vivo... Por meros instantes, porque de imediato disse a mim próprio que aquele ser humano merecia o meu sorriso, o meu abraço, a minha solidariedade, como merecem todos os seres humanos, sejam eles quem forem, façam eles o que fizerem. A minha esperança e confiança na humanidade não podiam ser abaladas por este episódio tão frugal. Temos que ser compreensivos, amorosos, positivos, apaixonados, temos que ser LOL. Mesmo quando abrimos o jornal e observamos a notícia de que 2013 tem sido um bom ano para os Centros Comerciais, números que se explicam com a chamada lei das compensações. Um equilíbrio óbvio. O comércio no centro das cidades foi arrasado, queimado, transformou-se num cemitério de lojas abandonadas, empurrando os consumidores para as catedrais do consumo. É melhor parar por aqui, o discurso ameaça ficar pesado, não devo sobrecarregar as minhas folgas com tamanho pessimismo. É preciso ver o mundo com outros olhos, olhos absolutos e totais que nos permitam penetrar na luz da Metafísica aristotélica, isto é, na cristalina fluidez de um Brian Weiss ou, em alternativa, nas barbas inspiradoras do Osho. O mundo não acaba numa caixa de multibanco nem numa carteira perdida, o mundo pode começar aí mas o todo nunca foi a soma das partes, tal como as pernas do caminhante não definem o seu coração. As partes é que dão cabo do todo, pelo menos enquanto não for possível pagar as contas com amor, paz e sossego.

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