Uma reportagem sobre espiritualidade. Espíritas, pessoas
que abraçam árvores, praticantes de yoga, caminhantes. Achei tudo deveras
positivo e saudável, pese embora a minha visão holística do mundo obrigar a
outras contas. Daí que ao dirigir-me a um MB para pagar o seguro do carro e uma
multa por atraso no pagamento do IMV, tenha tentado resistir estoicamente ao
negativismo acariciando o papel das notificações como se fossem partes do meu
corpo. Quem me observasse naquele momento poderia julgar-me rebarbado, tal
era a satisfação com que acariciava a lisura daqueles papéis. Segui para o trabalho com um sorriso nos lábios, irradiando positividade
e transmitindo ao mundo uma energia ao mesmo tempo translúcida e quente. Desconfio
que se notasse nos meus olhos o conforto que o niilismo dos dias teima em nos
negar. Fui então abordado por uma senhora que havia encontrado uma carteira
perdida num banco de jardim. Terá aberto a carteira e reparado num cartão da
loja onde trabalho. Perguntou-me se não lhe poderia passar os dados pessoais
daquele cartão, ao que respondi negativamente, com um sorriso nos lábios,
respeitando o direito à confidencialidade dos clientes. Sugeri à senhora em
causa que entregasse a carteira na polícia, ao que ela me respondeu com
indisfarçável desagrado comentando saber muito bem qual o funcionamento da
polícia portuguesa nestas situações. E rematou: enfim, para alguma coisa servem
os caixotes do lixo. Fiquei o resto do dia a pensar naquele remate, no que
pensaria ela se tivesse sido eu, por exemplo, a encontrar a sua carteira
perdida num banco do jardim. Preferiria que a entregasse na polícia,
independentemente dos procedimentos, ou que a lançasse num caixote do lixo?
Perante tal dúvida, a minha existência estremeceu. Foi-se-me a
alegria de estar vivo... Por meros instantes, porque de imediato disse a mim próprio
que aquele ser humano merecia o meu sorriso, o meu abraço, a minha
solidariedade, como merecem todos os seres humanos, sejam eles quem forem,
façam eles o que fizerem. A minha esperança e confiança na humanidade não podiam ser abaladas por este episódio tão frugal. Temos que ser compreensivos, amorosos, positivos, apaixonados, temos que ser LOL. Mesmo quando abrimos o
jornal e observamos a notícia de que 2013 tem sido um bom ano para os Centros
Comerciais, números que se explicam com a chamada lei das compensações. Um equilíbrio
óbvio. O comércio no centro das cidades foi arrasado, queimado, transformou-se
num cemitério de lojas abandonadas, empurrando os consumidores para as
catedrais do consumo. É melhor parar por aqui, o discurso ameaça ficar pesado,
não devo sobrecarregar as minhas folgas com tamanho pessimismo. É preciso ver o
mundo com outros olhos, olhos absolutos e totais que nos permitam penetrar na
luz da Metafísica aristotélica, isto é, na cristalina fluidez de um Brian Weiss
ou, em alternativa, nas barbas inspiradoras do Osho. O mundo não acaba numa
caixa de multibanco nem numa carteira perdida, o mundo pode começar aí mas o
todo nunca foi a soma das partes, tal como as pernas do caminhante não definem o seu coração. As partes é que dão cabo do todo, pelo menos
enquanto não for possível pagar as contas com amor, paz e sossego.
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