Hão-de permanecer misteriosas as condições que fazem da
Irlanda um viveiro de excelente literatura. Quatro Prémios Nobel sublinham o
fenómeno (William Butler Yeats, George Bernard Shaw, Samuel Beckett, Seamus
Heaney), mas não lhe garantem justiça. Basta pensar que Oscar Wilde, James
Joyce e Patrick Kavanagh não mereceram a distinção, para não falar de clássicos
como Jonathan Swift e Laurence Sterne. Flann O’Brien, pseudónimo de Brian O’Nolan
(1911-1966), é outro que merece lugar cativo no panteão irlandês. Herdeiro da
tradição satírica legada pelos melhores textos de Swift e Sterne, encontra no
absurdismo de Beckett e no experimentalismo de Joyce os pilares de uma escrita
avessa a convenções literárias e a um academismo castrador e cristalizador da liberdade
criativa. At Swim-Two-Birds, romance originalmente publicado em 1939, considerado
por muitos a sua obra-prima, foi finalmente traduzido para português por Maria
João Freire de Andrade. Publicado pela Cavalo de Ferro, surge nesta edição com
o título alternativo Uma Caneca de Tinta Irlandesa. A páginas 78, percebemos a
origem do título original - «igreja de Snámh-dá-én (ou seja, At
Swim-Two-Birds)» -, com fortes ligações à mitologia do Ulster que, de facto, seria
contraproducente procurar traduzir para língua portuguesa. De resto, todo o
romance mantém uma proximidade com estas figuras mitológicas e lendárias,
provenientes de espaços geográficos e ambientes culturais ricos em histórias
onde germinaram infindas personagens. É na relação com as personagens que
Flann O’Brien desenvolve uma narrativa onde se emaranham mundos ficcionais
paralelos, deslocando o leitor da realidade para um universo que, não estando
inteiramente desligado da mesma, se afasta dela para a observar de um modo
talvez menos interveniente. Temos, assim, um jovem ocioso que escreve um
romance sobre um escritor sofrível contra o qual se rebelam as suas
personagens, ganhando estas uma vivacidade comparável à do autor. Desta forma se transpõem
eventuais fronteiras entre criador e criado, realidade e ficção, facto e mito. O
resultado é, por vezes, hilariante, como na cena final do julgamento do pobre
escritor com as suas personagens a serem, ao mesmo tempo, juízes, júri e
testemunha, num rol de queixas onde se incluem as de uma vaca que não foi
ordenhada com regularidade no decorrer da narrativa. A autonomia das personagens face ao autor subverte
modelos tradicionais de escrita, ao mesmo tempo que nos impele, na condição
de leitores, a acompanhar o movimento introspectivo sugerido logo nos primeiros
parágrafos. Aquele retiro para a privacidade da mente, a predisposição para a
vida contemplativa, capaz de nos oferecer um livro com «três inícios
completamente diferentes, inter-relacionados apenas na presciência do autor»,
sugere uma deslocação do plano lógico para o plano absurdo, onde o nonsense se transforma em lei e sentido. Espanta que tais artifícios formais não tornem
o livro ilegível. Antes pelo contrário, Uma Caneca de Tinta Irlandesa lê-se com
agrado e interesse da primeira à última linha, muito por culpa do excelente sentido de humor de Flann O'Brien. Por vezes parece pretender
satirizar a «natureza da literatura contemporânea», mantendo-se bastante actual
nesse propósito, mas de um modo geral acaba por satirizar a natureza de
todo o trabalho intelectual. Os apartes que acompanham a narrativa indiciam
essa intenção, percebendo-se neles o poder terapêutico de uma boa cerveja e da
preguiça. Neste sentido, parecem coincidir as intenções do autor com as
intenções da personagem:
Afirmou-se que, pese embora o facto de tanto o romance
como o teatro serem exercícios intelectuais agradáveis, o romance é inferior ao
teatro, já que carece dos acidentes externos à ilusão, induzindo frequentemente
o leitor a um vil engano e a preocupar-se genuinamente com o destino de
personagens ilusórias. As peças de teatro são consumidas de um modo saudável
por grandes massas em lugares públicos; o romance é auto-administrado em
privado. O romance, nas mãos de um escritor sem escrúpulos, pode ser despótico.
Em resposta a uma pergunta, explicou-se que um romance satisfatório deve ser um
embuste evidente, o qual pode ser regulado livremente pelo leitor, a nível de
credulidade. É pouco democrático induzir as personagens a serem boas ou más,
pobres ou ricas. A cada um devia ser dada a possibilidade de ter uma vida
privada, autonomia de decisão e um padrão de vida decente. Isso seria criar a
dignidade, a satisfação e um serviço melhor. Seria incorrecto dizer que
conduziria ao caos. As personagens deveriam ser permutáveis entre livros. Todo o
corpo da literatura existente devia ser visto como um limbo a partir do qual
autores perspicazes poderiam retirar as suas personagens à medida das suas
necessidades, criando outras apenas quando não conseguissem encontrar um
fantoche já existente e adequado. O romance moderno devia ser em grande parte
uma obra de referência. A maior parte dos autores passa o seu tempo a dizer
aquilo que já foi dito antes – e, regra geral, dito de uma maneira melhor. Uma abundância
de referências a obras existentes iria familiarizar de imediato o leitor com a
natureza de cada personagem, iria evitar explicações cansativas e excluir
eficazmente charlatães, arrivistas, vigaristas e iliteratos da compreensão da
literatura contemporânea.
Flann O'Brien, in Uma Caneca de Tinta
Irlandesa (At
Swim-Two-Birds), trad. Maria João Freire de Andrade, Cavalo
de Ferro, Março de 2013, p. 28.
4 comentários:
Na mouche, voltando deste lado apenas a sugerir que traduzam "The Third Policeman" e a mandar por esta via um muito obrigada a Maria João Freire de Andrade.
este é o melhor blog
talvez a cerveja de antes do almoço de domingo
mas é
Falta dizer que gostei da tradução, apesar de preferir o título original.
E a Maria João Freire de Andrade agradece à Marina Tadeu um Obrigada, pelo comentário tão amável :-)
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