O vinho
Eis que Líber convoca o seu poeta; também ele
ajuda os amantes e alimenta o fogo em que ele próprio se inflama.
A jovem de Gnossos vagueava, fora de si, por areais desconhecidos,
lá onde a pequena ilha de Dia é batida pelas ondas do mar;
o corpo cingido com uma túnica, tal como saíra do sono,
os pés descalços, soltos os cabelos cor de açafrão,
gritava a crueldade de Teseu às ondas ensurdecidas,
regando, com pranto que não merecia, o rosto delicado;
gritava e chorava, ao mesmo tempo; mas ambas as coisas lhe ficavam bem;
não ficou mais feia por força das lágrimas que derramava;
e logo bate, uma vez mais, com as mãos no peito delicado
e diz: "Foi-se embora, aquele malvado! Que há-de ser de mim?
Que há-de ser de mim?", repete. Soaram címbalos por toda
a praia e tambores tocados por mãos de espanto.
Ela desfaleceu de medo e susteve, de súbito, a palavra;
no corpo inanimado, nem uma pinga de sangue restava.
Eis as Mimalónidas, de cabelos caídos ao longo das costas,
eis a turba dos sátiros ligeiros, que precede o deus na corrida;
eis o velho borrachão, Sileno; a custo se aguenta na corcunda do jumento
e segura, com habilidade, as crinas a que se agarra;
enquanto persegue as Bacantes e as Bacantes lhe fogem e o procuram,
enquanto este cavaleiro desajeitado fustiga a montada com o chicote,
escorrega e cai de cabeça, de cima do jumento orelhudo.
Gritaram os Sátiros: "Levanta-te, força, levanta-te, pai!"
Já o deus, no seu carro, que havia coberto de tranças de uvas,
soltava as rédeas cor de oiro aos tigres que o puxavam.
E a cor e Teseu e a voz se esvaíram à jovem
e três vezes tentou a fuga e três vezes ficou tolhida pelo medo;
tremeu de pavor, tal como o vento bamboleia as espigas estéreis,
tal como treme, nas águas do pântano, a cana.
Assim lhe disse o deus: "Eis-me aqui, eu que te sou mais fiel que o cuidado!
Deixa de ter medo! Esposa de Baco, ó filha de Gnossos, hás-de tu ser!
Recebe o céu por presente; no céu, serás contemplada, como uma estrela;
muitas vezes há-de a coroa de Creta orientar a nau perdida."
Assim falou. E, para ela se não assustar com os tigres,
desceu do carro (cedeu a areia ao peso dos seus pés),
envolveu-a num abraço, pois de nada lhe valia resistir,
e partiu; de tudo é capaz, com ligeireza, um deus.
Há umas que cantam "Himeneu!", há outras que gritam "Évio! Evoé!"
Assim se unem no leito sagrado a noiva e o deus.
Por isso, quando colocarem diante de ti os dons de Baco,
e tiveres por vizinha, no lugar do lado, uma mulher,
pede ao pai Nictélio e às divindades da noite
que não façam com que o vinho te perturbe a cabeça.
Aí, muitos segredos poderás dizer, com palavras disfarçadas,
que ela há-de sentir serem-lhe ditos a si,
e escrever palavras de ternura com um pouco de vinho,
para que na mesa ela possa ler que é a tua senhora
e contemplar os olhos com os olhos que denunciam a chama;
muitas vezes, no silêncio, possui o rosto voz e palavras.
Procura ser o primeiro a arrebatar o copo tocado dos seus lábios
e, do lado por onde bebeu, bebe tu também;
e qualquer pedaço de comida que os seus dedos tenham roçado,
pede-lho; e, ao mesmo tempo que lho pedes, toca-lhe as mãos.
Procura agradar, também, ao marido da tua amada;
ser-vos-á mais útil, se se tornar teu amigo.
Se te calhar em sorte beber, concede-lhe, primeiro, a sorte a ele;
seja-lhe concedida a ele a coroa deposta sobre a tua cabeça;
quer seja menos que tu, quer seja teu igual, tenha ele a primazia em tudo,
e não hesites em apoiar as suas conversas;
seguro e frequentado é esse caminho, de enganar com nome de amigo;
por mais seguro e frequentado que seja o caminho, é culposo.
Assim o procurador alarga em demasia a procuração
e julga que lhe cabe indagar mais do que lhe foi mandado.
Dar-te-ei a medida certa no beber:
que cabeça e pés se mantenham capazes de cumprir a sua função.
Tem particular cautela com contendas provocadas pelo vinho
e com mãos demasiado prontas a lutas ferozes.
Assim morreu Eurítion, por beber à farta o vinho que lhe serviram;
mais própria é a mesa e o vinho para gostosos folguedos.
Se tens voz, canta; se tens braços elegantes, dança,
e com qualquer arte com que sejas capaz de encantar, encanta;
a bebedeira, tanto é nefasta, se verdadeira, como é útil, se fingida;
faz a tua língua murmurar, titubeante, sons balbuciados,
por forma a que o que fizeres ou disseres, mais desbragado que o normal,
seja tido na conta de vinho a mais;
e exclama: "Ventura a esta dama; ventura a quem com ela dorme!
Mas desventura", pragueja para os teus botões, "ao seu marido!"
Mas quando os convivas se levantarem da mesa e partirem,
a multidão, ela mesma te há-de dar espaço para te chegares perto;
mete-te no meio da confusão e chega-te a ela, de mansinho, enquanto caminha,
belisca-lhe o corpo com os dedos e, com o teu pé, toca o pé dela.
Ovídio, in Arte de Amar, trad. Carlos Ascenso André, Biblioteca editores Independentes, Maio de 2008, pp. 45-47.
2 comentários:
Obrigada.
Sempre às ordens
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