O volume que agora se toma como sendo a Autobiografia
(Sistema Solar, Janeiro de 2014) do “escritor austríaco” Thomas Bernhard (n. 1931
– m. 1989) consiste, na realidade, numa reunião de cinco livros de pendor
autobiográfico publicados entre 1975 e 1982. São eles A Causa (1975), A Cave
(1976), A Respiração (1978), O Frio (1981) e Uma Criança (1982). Nestes livros,
Bernhard percorre, sem respeitar uma ordem cronológica, as memórias da infância
e da adolescência. José A. Palma Caetano, responsável pela versão portuguesa,
explica numa breve introdução que «essa ordem obedece ao pretexto que deu
origem ao primeiro volume, que não foi concebido como o início de uma
autobiografia, mas nela veio depois a resultar, como um encadeamento natural,
que não deve nem pode deixar de ser respeitado (como já houve quem quisesse
fazer, transformando o quinto volume em primeiro)» (pp. 14-15). Isto sucede
porque o quinto volume é aquele que mais se concentra nos tempos da infância, não
sendo, porém, exclusiva de nenhum dos livros uma fase específica do
desenvolvimento da personagem em análise.
Digo personagem por ser nesse papel que Bernhard se coloca a
si próprio, negando logo à partida a possibilidade de uma reconstrução biográfica
fiel a uma suposta verdade. A noção de que esta verdade é inatingível implica a
substituição da verosimilhança, enquanto carácter final do exercício de memória,
pelo porventura mais correcto e justo conceito de alusão. Desta forma, o percurso
estabelecido não respeita qualquer lógica cronológica, não reivindica nenhum
estatuto de verdade, optando antes pelos interstícios de uma representação lacónica, e deliciosamente divagante, onde se torna evidente a vontade de um ajuste de contas, por vezes ao jeito de exame
de consciência, com a vida. Ao terceiro livro dirá: «A perfeição em nada é possível
e muito menos no que é escrito e de modo algum em notas como estas, que se compõem
de milhares e milhares de farrapos de recordação. O que aqui se apresenta são
fragmentos, com os quais, se o leitor quiser, se pode compor um todo. Nada
mais. Fragmentos da minha infância e juventude, nada mais» (p. 288).
Alguns dados são sublinhados reiteradamente, pelo que
podemos supor serem os mais determinantes para o autor: um pai ausente, uma
figura materna inspiradora de sentimentos ambivalentes, a influência
determinante do avô materno, uma irrequietude inata que abrirá as portas ao desassossego,
à desesperança, à inquietação, o desprezo absoluto pelo ambiente social de
Salzburgo, cidade adoptiva, as complicações da guerra e do pós-guerra, uma permanente
indefinição quanto a talentos e aptidões, uma infância marcada por uma sensibilidade
extraordinária e, por isso, irreconhecível, saúde débil, perturbações
depressivas, tendências suicidas ultrapassadas por uma confessada cobardia… Outro
aspecto fundamental é o facto de haver na parte da vida aqui retratada uma
permanente sujeição aos ditames de instituições diversas onde o autor se sentiu
ao mesmo tempo exilado de si próprio, cativo de interesses alheios, vítima de
obsessões terceiras. Da casa de correcção na infância ao sanatório da adolescência,
passando pelos abrigos no tempo da guerra e a reclusão num sistema de ensino
onde a severidade do catolicismo extremo é comparada à austeridade do
nacional-socialismo dos tempos da ocupação nazi, encontramos esta expressão revulsiva
da liberdade oprimida e castrada.
As conclusões são hiperbólicas, embora inteligíveis: «Durante toda a minha vida nunca houve nada que eu mais admirasse do que os suicidas. Eles excedem-me em tudo, tudo, pensei eu sempre, não valho nada e estou preso à vida, por mais horrível e mesquinha, mais asquerosa e infame, mais banal e ignóbil que ela seja. Em vez de me suicidar, aceito todos os compromissos repugnantes, rebaixo-me a toda a gente e refugio-me na falta de carácter como numa pele que cheira mal, mas que aquece, na reles sobrevivência! Desprezo-me, porque continuo a viver» (p- 373). Importa esclarecer que estas palavras reproduzem pensamentos soltos, divagações de um jovem isolado e acossado pela doença, e é isso que as torna invulgares como invulgar é esta capacidade de Thomas Bernhard para percorrer a memória dando a ver o pensamento. Escrita reveladora que repercute violentamente as fraquezas e as forças, o orgulho e a repulsa, o medo, o ódio, a solidão que alicerçam a alma atormentando a personalidade, em relação directa com uma situação existencial que não está nas mãos de ninguém determinar. Ou seja, parece haver na escrita de Bernhard uma revolta que propõe o abandono dessa ideia de que está nas mãos do indivíduo a determinação da sua existência, tanto quanto se declina igualmente a subjugação do indivíduo a um destino. Herói e cobarde, vítima e criminoso, o homem cumpre a sua tragédia e alimenta a sua comédia podendo apenas assegurar-se que, feitas as cotas, resta-lhe o absurdo e a inutilidade como genes inultrapassáveis disto a que chamamos vida: «Toda a nossa vida, se a tomarmos a sério, não é senão uma sórdida agenda de acontecimentos, no fim completamente rasgada» (p. 284).
As conclusões são hiperbólicas, embora inteligíveis: «Durante toda a minha vida nunca houve nada que eu mais admirasse do que os suicidas. Eles excedem-me em tudo, tudo, pensei eu sempre, não valho nada e estou preso à vida, por mais horrível e mesquinha, mais asquerosa e infame, mais banal e ignóbil que ela seja. Em vez de me suicidar, aceito todos os compromissos repugnantes, rebaixo-me a toda a gente e refugio-me na falta de carácter como numa pele que cheira mal, mas que aquece, na reles sobrevivência! Desprezo-me, porque continuo a viver» (p- 373). Importa esclarecer que estas palavras reproduzem pensamentos soltos, divagações de um jovem isolado e acossado pela doença, e é isso que as torna invulgares como invulgar é esta capacidade de Thomas Bernhard para percorrer a memória dando a ver o pensamento. Escrita reveladora que repercute violentamente as fraquezas e as forças, o orgulho e a repulsa, o medo, o ódio, a solidão que alicerçam a alma atormentando a personalidade, em relação directa com uma situação existencial que não está nas mãos de ninguém determinar. Ou seja, parece haver na escrita de Bernhard uma revolta que propõe o abandono dessa ideia de que está nas mãos do indivíduo a determinação da sua existência, tanto quanto se declina igualmente a subjugação do indivíduo a um destino. Herói e cobarde, vítima e criminoso, o homem cumpre a sua tragédia e alimenta a sua comédia podendo apenas assegurar-se que, feitas as cotas, resta-lhe o absurdo e a inutilidade como genes inultrapassáveis disto a que chamamos vida: «Toda a nossa vida, se a tomarmos a sério, não é senão uma sórdida agenda de acontecimentos, no fim completamente rasgada» (p. 284).
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