domingo, 18 de maio de 2014

NUNCA MAIS É SÁBADO!...


- conjecturamos à segunda-feira,
início de uma longa ressaca,
em todas as claves, desde o ré menor
gemebundo aos claros tons de sol maior.
Nós os humildes e os humilhados,
os que não temos rosto próprio porque somos
o rosto da multidão. Nós, o branco-branco,
o preto-preto e o branco-preto.
O senhor que desce o elevador da manhã
e a virgem desflorada na véspera
que o sobe trazendo nos olhos o pavor
da gravidez e da desonra (e é obrigatória
em todos os articulados deste género). E a moça
desflorada há mais tempo, um namorado
tímido e um senhor casado a compensar
a timidez do adolescente, com a ciência
mais exacta, mais precisa, que lhe vem
do tédio conjugal. E o velho guarda negro
do elevador, a piscar, a piscar um sono
nunca redimido. E o contínuo que não vai
de elevador, mas sobe pela escada de serviço
até ao quinto andar, carregando em jeito
de via sacra a bicicleta da firma,
cada qual trepando a seu Gólgota privativo.
E os que esperam para lá da penumbra
dos balcões, no silêncio húmido dos armazéns,
no bafio burocrático e gris das repartições
com funcionários de vida atribulada
funcionários de vida empenhada,
funcionários de vida sempre estragada.
Os que esperam na jaula envidraçada dos cafés,
fumando o cigarro bronquítico da melancolia;
na fuligem luminosa do cais, nas zonas
de carga e descarga, na longa fita de asfalto
ardente, na perigosa articulação dos ângulos
de betão do prédio de onze andares.
Os que uma regra de excepção escondeu
por detrás dos altos muros de um silêncio
recluso e têm o olhar mortiço
e a expressão resignada. Os que dormitam
atentos, em bancos públicos de jardim,
os que fazem um amor rápido e dolorido
a horas impróprias, em apartamentos de empréstimo.
O estudante com a mão entalada nas coxas
firmes e tépidas da colega morena e sensual,
o marinheiro adormecido na branca espuma
da sétima cerveja, as putas adejando,
multicolores borboletas do vício, blenorragias
de transmissão fulminante e cura arrastada.
Os que alimentam de miséria a sua miséria
e outros que, estando melhor, a nutrem
na miséria de pequenas e grandes indústrias.
E os que nem sequer a alimentam
no lôbrego ventre de oficinas e fábricas.
Toda a população flutuante do elevador
e da escada de serviço, do prédio e da rua;
o senhor engenheiro com uma dor de corno
e dois projectos enguiçados; o clínico preso
aos afazeres (cinco prédios, uma hérnia estrangulada
e o consultório cheio de pacientes); o advogado
a correr atrás dos prazos, dos prazos
cada vez mais curtos; a senhora enfrentando
a crise difícil da menopausa, a viúva
de negro que vai ao médico com uma pontada
no baixo-ventre e uma amostra de urina
num frasco embrulhado em papel de jornal.
Da escada de serviço e do elevador
para o prédio, do prédio para a rua, 
da rua para a praça, da praça para a cidade,
da cidade para o subúrbio, onde crescem
a doença, o medo, a fome e o futuro,
- nunca, nunca mais é sábado.

Rui Knopfli (n. 1932 - m. 1997), in Mangas Verdes com Sal (1969). «Poeta do quotidiano e dos seus desassossegos, Knopfli é motivado por factores diversos e imponderáveis, por vicissitudes biográficas que estão na raiz dos seus poemas. Mas a memória, que tem na poesia o seu livro de horas, é mais significativamente detectável nos planos da sincronia ideativa do que ao nível do calendário privado e da sucessão cronológica, cuja importância não se pretende minimizar, nem jamais se descurou, porque sem ela é impossível apontar a trajectória seguida pelo poeta na elaboração da sua experiência. Poesia de uma subjectividade lúcida e autovigiada, ela é também e declaradamente o memorial privado de uma história colectiva. (...) O seu lirismo antilírico, a sua ironia comovida, o seu sarcasmo - bem menos iconoclasta do que, à primeira vista, poderá parecer -, aparentam-no, umas vezes, com João Cabral de Melo Neto ou Carlos Drummond de Andrade. Outras vezes, no apuro torturado da forma, Knopfli lembra essoutro maneirista, Gerard Manley Hopkins (1844-1889), o que não o faz menos poeta do seu tempo do que este o foi do dele, e é e continuará a ser do nosso. O apuramento verbal é para Knopfli a qualidade suprema do discurso poético. Por isso visita os mesmos temas, transfigurando-os nos desgastes e empolamentos da memória, ou retomando-os numa outra clave» (Luís de Sousa Rebelo, in A Memória Consentida de Rui Knopfli)

Sem comentários: