sábado, 17 de maio de 2014

O TEMPO SUJO


Há dias que eu odeio
Como insultos a que não posso responder
Sem o perigo duma cruel intimidade
Com a mão que lança o pus
Que trabalha ao serviço da infecção

São dias que nunca deviam ter saído
Do mau tempo fixo
Que nos desafia da parede
Dias que nos insultam que nos lançam
As pedras do medo os vidros da mentira
As pequenas moedas da humilhação

Dias ou janelas sobre o charco
Que se espelha no céu
Dias do dia-a-dia
Comboios que trazem o sono a resmungar para o trabalho
O sono centenário
Mal vestido mal alimentado
Para o trabalho
A martelada na cabeça
A pequena morte maliciosa
Que na espiral das sirenes
Se esconde e assobia

Dias que passei no esgoto dos sonhos
Onde o sórdido dá as mãos ao sublime
Onde vi o necessário onde aprendi
Que só entre os homens e por eles
Vale a pena sonhar.

Alexandre O'Neill (n. 1924 - m. 1986), in No Reino da Dinamarca (1958). «O'Neill propaga à mordacidade satírica e à comoção lírica, por vezes combinadas entre si e com vários tons humorais flutuantes, a liberdade metafórica e sintáctica do surrealismo. Leva como que à coagulação poética as moléculas desagregadas do prosaico, dentro de uma tradição que vem das cartas de Camões até Garção, e desde o Abade de Jazente, Tolentino e Bocage até Penha e ao Junqueiro da Musa em Férias. Raras vezes se terá apreendido tão bem, e de um mesmo lance, a intimidade invisível «num tropeço de ternura» e a intimidade convincente da «vírgula maníaca» do burocrata, como na «pequena dor à portuguesa», de Um Adeus Português (um dos extraordinários poemas de amor que escreveu). A apreensão flagrante e humorada de ambientes e tipos (sobretudo velhotes) de Lisboa, dos pequenos e reveladores ridículos nacionais, próprios e alheios, supre bem alguns excessos de epanáforas inventariantes, de enumerações caóticas, de associações inicialmente aleatórias ou metodicamente viradas do avesso, entre outros ingredientes pobres ou de eficácia mais ocasional» (A. J. Saraiva, Óscar Lopes, in História da Literatura Portuguesa). «A força e a violência das contradições da poesia de O'Neill impedem que nos refiramos a fraquezas formais. Elas não existem porque o poeta não se colocou no plano em que a expressão é criticável, ou o não atingiu ainda. Não é a harmonia ou a unidade dum poema o que nos oferece; não nos propõe qualquer mundo original ou qualquer original ponto de vista. Trata-se de provocar, de projectar a resistência interna do poeta; é necessário que as palavras firam como pedras. Poeta-exortista como esse não caprichoso nem arbitrário Michaux, O'Neill sabe a utilidade do esconjuro, de que é um belo exemplo O Poema Pouco Original do Medo, que é bom ler» (António Ramos Rosa, in Poesia, Liberdade Livre).

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