sábado, 31 de maio de 2014

DOUDA CORRERIA

Baptizada com a água benta da loucura pré-modernista, a Douda Correria respigou o nome nos versos de Ângelo de Lima: «Pára-me de repente o Pensamento… / — Como se de repente sofreado / Na Douda Correria… em que, levado… / — Anda em Busca… da Paz… do Esquecimento». Fazendo justiça ao “poeta de Rilhafoles”, este projecto editorial "vem-se" encarregando de nos lembrar que são múltiplos e intrincados os caminhos da poesia. Neles transitamos com espanto e incauta erudição, predispostos a aceitar tanto as pedras que se metem no sapato da hermenêutica como os trilhos ínvios da linguagem simbólica/metafórica. O segredo está em aventurarmo-nos no texto como quem desbrava caminho numa floresta virgem (ou de todo violada, que vai dar ao mesmo), rumo a um fim que tanto pode ser o da experiência encerrada nesse simples acto de caminhar como o de uma percepção subjectiva de sentidos. Tomemos de exemplo os tomos segundo e terceiro de uma aventura ainda fresca. Pleno Emprego (Dezembro de 2013), de Miguel Cardoso (n. ?), e Comida (Janeiro de 2014), de Miguel Castro Caldas (n. 1972), são textos que tiveram na sua origem propósitos concretos. O primeiro, foi escrito para uma instalação sonora; o segundo, foi composto para ser representado. De resto, convém esclarecer que Comida viu uma primeira publicação na excelente colecção Livrinhos de Teatro, da Livros Cotovia, em conjunto com as peças Casas e Repartição. Há, pois, uma dimensão dramática em ambas as prosas que não pode ser negligenciada. São escrita que nasce de uma intenção performativa inicial, palavras que reclamam uma representação, mais que não seja simplesmente vocal, imagens que exigem uma voz que as transfigure de corpo inteiro. Dão belas peças radiofónicas, tal o poder sugestivo que ambos os textos encerram. Pleno Emprego pode também ser lido enquanto poema-manifesto, uma espécie de discurso, sem princípio nem fim, para orador transgénico e plateia indefinida. Como o próprio título indica, o âmbito em que se desenvolve é social e político. Não obstante, seria demasiado redutor encafuá-lo nessas duas dimensões. Há um automatismo e um caos aparentes que elevam a condição aludida de “ciência económica” à condição explícita de “poesia enfurecida”. O lugar do comício é uma casa de banho (que melhor lugar para se dissertar sobre o pleno emprego?), partindo o tribuno de uma caracterização do status quo para a manifestação retórica de todo um programa: «Sou pelo pleno emprego do fogo-de-artifício, sobretudo para despistar helicópteros». A verve satírica que condimenta o discurso, repleta de jogos de linguagem e de gestos derisórios, surrealiza a atmosfera, mina o sentido inclusive do termo emprego, utilizado enquanto verbo ou substantivamente. Esta ambiguidade é também detonadora do coloquialismo vigente, sendo as expressões populares empregues retorcidas e usurpadas do seu significado comum, pois «o essencial, o essencial mesmo, é ter nomes para dar às coisas, e ter coisas que dêem com os nomes».
Numa mesma linha absurdizante, Comida faz-se valer de um narrador indefinido. Ou nem tanto. Fala-nos Zé, um Zé ninguém que pode ser alguém. Será. Se o texto de Miguel Cardoso tinha a limitá-lo um referencial geográfico lisboeta, neste caso a prosa universaliza-se. Trata-se de um monólogo inscrito na mesma linha descomprometida da intervenção social, aqui concentrada na génese trinitária da tragédia humana: fome/trabalho/comida. Uma confissão pessoal: o peixe da capa enviou-me para o universo vieirino do Sermão aos Peixes, tendo experimentado uma primeira leitura, delirante, por certo, em que o Zé que nos fala podia ser um peixe enclausurado no seu aquário. Aí, o papel dos intervenientes no sermão inverter-se-ia. Teríamos um espinhoso sermão dos peixes a Santo António, ou, pelo menos, o sermão de um peixe a Santo António, inflexão porventura mais consentânea com a libertação de estereótipos que estes textos inculcam. O texto de Miguel Castro Caldas presta-se, antes, a uma ilógica identitária da qual irrompe, com especial vigor, um julgamento da normalidade e das convenções que castram a existência humana: «o homem um bate na minha mãe enquanto o dois controla por trás a cabeça da minha mãe vai rodando como se estivesse a assistir a um jogo de pingue-pongue e eu não faço nada obedeço não faças nada obedeço não faças nada obedeço por isso quando me perguntam eu digo tudo bem não me posso queixar aquilo era tudo gente do tipo normal de manhã para o trabalho a tecto não ao relento tecto de abrir fechado gente que também come». Tanto Pleno Emprego como Comida revelam uma atenção social largamente arredada do lirismo que contamina a maioria da poesia portuguesa, quase sempre circunscrita ao ego e às suas fraquezas, dores, lamentações pessoais. A vertente dramática que os subsidia pode desviar as atenções da sua natureza fundadora: são, apesar de tudo, representações poéticas do mundo em que vivemos, são uma “poesia” cujo primeiro palco é, precisamente, o da vida comunitária. Têm, por isso, um alcance tremendo, um alcance que extravasa as fronteiras da lírica e nos coloca perante o rosto transfronteiriço do poético.  

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