Baptizada com a água benta da loucura pré-modernista, a
Douda Correria respigou o nome nos versos de Ângelo de Lima: «Pára-me de
repente o Pensamento… / — Como se de repente sofreado / Na Douda Correria… em
que, levado… / — Anda em Busca… da Paz… do Esquecimento». Fazendo justiça ao “poeta
de Rilhafoles”, este projecto editorial "vem-se" encarregando de nos lembrar que
são múltiplos e intrincados os caminhos da poesia. Neles transitamos com espanto
e incauta erudição, predispostos a aceitar tanto as pedras que se metem no
sapato da hermenêutica como os trilhos ínvios da linguagem simbólica/metafórica.
O segredo está em aventurarmo-nos no texto como quem desbrava caminho numa
floresta virgem (ou de todo violada, que vai dar ao mesmo), rumo a um fim que
tanto pode ser o da experiência encerrada nesse simples acto de caminhar como o
de uma percepção subjectiva de sentidos. Tomemos de exemplo os tomos segundo e
terceiro de uma aventura ainda fresca. Pleno Emprego (Dezembro de 2013), de Miguel
Cardoso (n. ?), e Comida (Janeiro de 2014), de Miguel Castro Caldas (n. 1972),
são textos que tiveram na sua origem propósitos concretos. O primeiro, foi
escrito para uma instalação sonora; o segundo, foi composto para ser
representado. De resto, convém esclarecer que Comida viu uma primeira
publicação na excelente colecção Livrinhos de Teatro, da Livros Cotovia, em
conjunto com as peças Casas e Repartição. Há, pois, uma dimensão dramática em
ambas as prosas que não pode ser negligenciada. São escrita que nasce de uma
intenção performativa inicial, palavras que reclamam uma representação, mais
que não seja simplesmente vocal, imagens que exigem uma voz que as transfigure
de corpo inteiro. Dão belas peças radiofónicas, tal o poder sugestivo que ambos
os textos encerram. Pleno Emprego pode também ser lido enquanto poema-manifesto,
uma espécie de discurso, sem princípio nem fim, para orador transgénico e
plateia indefinida. Como o próprio título indica, o âmbito em que se desenvolve
é social e político. Não obstante, seria demasiado redutor encafuá-lo nessas
duas dimensões. Há um automatismo e um caos aparentes que elevam a condição aludida
de “ciência económica” à condição explícita de “poesia enfurecida”. O lugar do
comício é uma casa de banho (que melhor lugar para se dissertar sobre o pleno
emprego?), partindo o tribuno de uma caracterização do status quo para a manifestação
retórica de todo um programa: «Sou pelo pleno emprego do fogo-de-artifício,
sobretudo para despistar helicópteros». A verve satírica que condimenta o
discurso, repleta de jogos de linguagem e de gestos derisórios, surrealiza a atmosfera,
mina o sentido inclusive do termo emprego, utilizado enquanto verbo ou
substantivamente. Esta ambiguidade é também detonadora do coloquialismo
vigente, sendo as expressões populares empregues retorcidas e usurpadas do seu
significado comum, pois «o essencial, o essencial mesmo, é ter nomes para dar
às coisas, e ter coisas que dêem com os nomes».
Numa mesma linha absurdizante,
Comida faz-se valer de um narrador indefinido. Ou nem tanto. Fala-nos Zé, um Zé
ninguém que pode ser alguém. Será. Se o texto de Miguel Cardoso tinha a
limitá-lo um referencial geográfico lisboeta, neste caso a prosa
universaliza-se. Trata-se de um monólogo inscrito na mesma linha descomprometida
da intervenção social, aqui concentrada na génese trinitária da tragédia
humana: fome/trabalho/comida. Uma confissão pessoal: o peixe da capa enviou-me
para o universo vieirino do Sermão aos Peixes, tendo experimentado uma primeira
leitura, delirante, por certo, em que o Zé que nos fala podia ser um peixe enclausurado
no seu aquário. Aí, o papel dos intervenientes no sermão inverter-se-ia.
Teríamos um espinhoso sermão dos peixes a Santo António, ou, pelo menos, o sermão de um
peixe a Santo António, inflexão porventura mais consentânea com a libertação de
estereótipos que estes textos inculcam. O texto de Miguel Castro Caldas presta-se,
antes, a uma ilógica identitária da qual irrompe, com especial vigor, um julgamento
da normalidade e das convenções que castram a existência humana: «o homem um
bate na minha mãe enquanto o dois controla por trás a cabeça da minha mãe vai
rodando como se estivesse a assistir a um jogo de pingue-pongue e eu não faço
nada obedeço não faças nada obedeço não faças nada obedeço por isso quando me
perguntam eu digo tudo bem não me posso queixar aquilo era tudo gente do tipo
normal de manhã para o trabalho a tecto não ao relento tecto de abrir fechado
gente que também come». Tanto Pleno Emprego como Comida revelam uma atenção
social largamente arredada do lirismo que contamina a maioria da poesia
portuguesa, quase sempre circunscrita ao ego e às suas fraquezas, dores,
lamentações pessoais. A vertente dramática que os subsidia pode desviar as
atenções da sua natureza fundadora: são, apesar de tudo, representações poéticas
do mundo em que vivemos, são uma “poesia” cujo primeiro palco é, precisamente,
o da vida comunitária. Têm, por isso, um alcance tremendo, um alcance que
extravasa as fronteiras da lírica e nos coloca perante o rosto transfronteiriço
do poético.
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