sábado, 31 de maio de 2014

POEMA DO ALEGRE DESESPERO


Compreende-se que lá para o ano três mil e tal
ninguém se lembre de um certo Fernão Barbudo
que plantava couves em Oliveira do Hospital,

ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores
que tirou um retrato toda vestida de veludo
sentada num canapé junto de um vaso com flores.

E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três impérios do Egipto
(o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império)
com muitos faraós, todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil,
e o Estrabão, e o Artaxerxes, e o Xenofonte, e o Heraclito,
e o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do Péricles, e a retirada dos dez mil,
e os reis de barbas encaracoladas que eram senhores de muitas terras,
que conquistavam o Lácio e perdiam o Epiro, e conquistavam o Epiro e perdiam o Lácio,
e passavam a vida inteira a fazer guerras,
e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio,
e o resto tudo por aí fora,
e a Guerra dos Cem Anos,
e a Incrível Armada,
e as Campanhas de Napoleão,
e a bomba de hidrogénio,
e os poemas de António Gedeão.

Compreende-se.

Mais império menos império,
mais faraó menos faraó,
será tudo um vastíssimo cemitério,
cacos, cinzas e pó.

Compreende-se.
Lá para o ano três mil e tal.

E o nosso sofrimento para que serviu afinal?

António Gedeão (n. 1906 - m. 1997), in Linhas de Força (1967). «O recurso à terminologia científica é reconhecidamente uma das características desta poesia. Por vezes António Gedeão parece recear não ser, por esse facto, acessível e então traduz: "Desfez-se em azuis rosados, tinturas de tornesol". Normalmente, o discurso organiza-se em orações correctas do ponto de vista gramatical mas aqui e ali, principalmente nos finais de poema, a enumeração tudo pulveriza, ora pelo recurso insistente ao verbo ser, à cópula - "isto é aquilo" - ora pela sucessão pura e simples de designações, de atributos, de epítetos. (...) Lá muito de longe em longe, mas apesar de tudo visível, talvez se note certas sobrevivências decadentistas, como "bebedeiras de azul" e o verso "e o seu canto, no ar, é uma flecha embandeirada" a recordar possivelmente o Fernando Pessoa de, por exemplo, O Opiário. Jorge de Sena observa o classicismo e o barroquismo de Gedeão no desenvolvimento dos poemas ou na escolha dos títulos e eles são também visíveis por exemplo na adjectivação, que chega a parecer redundante, como em "doce brisa", "verde seara" ou na explosão em epítetos já por nós denunciada e que ocorre especialmente para o final de certos poemas» (Ruy Belo, in Na Senda da Poesia).

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