Na obra reunida de M. S. Lourenço – O Caminho dos Pisões
(Assírio & Alvim, Setembro de 2009) – há um texto intitulado As Ilhas (p. 67)
onde deparamos com um escritor que faz a seguinte confissão:
O meu modo de dormir nada tem de especial ou característico
que mereça aqui uma referência especial. Talvez apenas valha a pena citar o
pormenor que até tarde, mesmo já depois dos vinte anos, acontecia por vezes que
urinava na cama. Mas isto verificava eu de manhã com mágoa; procurava
emendar-me mas era inevitável.
A repetição do termo especial numa só frase, onde a excepcionalidade do caso anunciado pretende ser anunciada, leva-nos a desconfiar da honestidade por detrás da afirmação. Na realidade, é bastante especial aquilo a que se nega especialidade. Senão veja-se, acrescenta o narrador que este facto originou várias
animosidades na sua vida, culminando num afastamento dos outros, numa solidão
intransponível, numa «vida de incomunicação e de desamor». E conclui:
Defendo energicamente que é impossível dois homens chegarem
a um entendimento. Ou duas mulheres. Ou um homem e uma mulher. Vivemos como
ilhas.
Como chega o escritor a esta conclusão? Aquilo a que chama o seu «pensamento
filosófico» fundamentou-se numa anomalia fisiológica: incontinência urinária. Não
vou especular sobre a influência de factores biográficos específicos na formação
de teses filosóficas pretensamente universais, mas sublinho o desenvolvimento da revelação:
O sono é o único momento na vida do homem, juntamente com as
funções fisiológicas mais imediatas, em que se pode falar de fraternidade entre
os homens. Aí, no momento em que cada um dorme, urina, defeca, vomita, aí –
digo eu – devemos procurar o traço que liga todos os homens. Particularmente no
sono: será aqui, com toda a certeza, que a animalidade do homem está mais
patente. Ressonar, respirar com estrondo, acordar a pessoa que dorme a nosso
lado, ou o vizinho, que, no outro quarto, não consegue dormir, etc.
Repare-se como ascendemos da física à metafísica a partir da
consciência escatológica da humanidade. Unidos pelas funções vitais, os homens
- diria mesmo todos os seres animais - perdem
as propriedades que os afastam, distinguem, separam. A dormir, somos fraternos. A cagar, a mijar, a vomitar, os homens reencontram-se na alteridade. Somos todos cagões e mijões,
embora uns mais que outros. Também nas páginas finais do quinto volume da
Autobiografia de Thomas Bernhard nos confrontamos com esta “filosofia do mijo”:
Depois da refeição fomos dormir por trás de uma porta de
vidro, na qual estavam colados bonitos papéis antigos com desenhos orientais. Foi
uma noite em branco, como se pode imaginar. Felizmente. Pois pela primeira vez
depois de muito tempo, devido ao facto de não ter podido ou querido adormecer,
não urinei na cama. Com efeito eu tinha-me tornado havia muito um chamado mijão,
além de desordeiro, passei a ser também, com o tempo, o mijão. Em casa não havia
nenhuma noite em que eu não acordasse com o lençol molhado, sempre cheio de
medo, como se pode imaginar. Urinar na cama tem as suas causas, mas disso não
tinha eu ideia nenhuma. Quando acordava, já tinha caído na maior desgraça. Tremia
de medo. Mal me levantava, queria geralmente esconder ainda a minha vergonha
com o cobertor, mas a minha mãe puxava-o logo furiosa e atirava-me com o lençol
à cara. Durante meses, por fim durante anos. Eu tinha um novo título, quase
mortal: mijão!
Dispensarei o leitor dos pormenores traumatizantes sobre os
quais Bernhard exerce a sua auto-análise literária. Quero apenas sublinhar esta
feliz coincidência entre dois escritores mijões cujas obras dificilmente teriam
sido as mesmas se não tivessem encontrado fundamento nesse momento de alivio
que liga os mundos onírico e real. Muita filosofia nasce da incontinência. E se urinar na cama tem as suas causas, não podemos negar que terá igualmente as suas consequências. Estranho que nas histórias da literatura,
nos compêndios de crítica literária, nos guias de hermenêutica e de exegese filosófica, nunca tenhamos encontrado uma entrada dedicada ao tema: xixi na cama. M. S. Lourenço e Thomas Bernhard lançam pistas para uma filosofia do mijo, a qual, infelizmente, ainda está por arquitectar com o rigor que a questão merece.
9 comentários:
Mesmo?
A que se refere a dúvida: à importância de uma filosofia do mijo ou à inexistência de uma entrada sobre o tema nos anais a teoria literária?
A dúvida prende-se com o facto de não saber a qual atribuir maior relevância: se à praxiologia do mijo (como forma potenciadora de comunicação), se à fixação hermenêutica dessa semiótica.
Há também a poesia diurética, desenvolvida por Luís Adriano Carlos no prefácio à obra poética de José Emílio-Nelson. Isto merece desenvolvimentos.
Indeed.
Olhem, ó estranhos, por aqui mijei-me a rir. Se soubesse de quem estão a falar, teriam a prova.
Há fortes possibilidades de a Marina vir a tornar-se um génio, tendo em conta uma relação que podemos estabelecer entre o mijar (ainda que a rir) e a produção de obras geniais. (podia ser obras genitais, mas esse será tema para outro post)
Génio é para os crentes, quer dizer cagões. «Direi, salvo o vosso devido respeito, que ele faz milagres, pois ele tem o cu redondo e faz os dejectos quadrados.» Foi o que disse esta manhã aqui nos correios um tal de Nicolas Poussin. O mijo correu de jure et de facto e decididamente in loco. Ou seja, o texto e a vossa conversa (não sei quem é Jorge Melícias mas vou à procura) funcionou. Já não é mau.
O alívio do leitor é a satisfação do escriba.
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