segunda-feira, 19 de maio de 2014

REQUIEM POR RUTH HANDLER


Morreu ontem a mãe da Barbie,
a boneca adolescente. À semelhança de
Atena, Barbie saiu armada dum
cérebro, não divino, mas industrioso,
com a longa cabeleira e a azúlea mirada.

Morreu a mãe da Barbie, a filha
que nunca será orfã, pequeno duende
de soutien 38 e de 33 polegadas
de altura. Trinta e três polegadas
multidesejantes de sonho
anatomicamente impossível.

Morreu a mãe da Barbie, que
faz ballet, ski, patins em linha e
todos os desportos radicais e tem
um namorado elegante, que jamais
a trairá e amigos tão anatomicamente
imperfeitos como ela.

Morreu a mãe da Barbie, que vai
a todas as festas com muitos
vestidos de gala e enegreceu
há uns anos, qual Naomi Campbell, para
ser consumida pela boa
consciência racial do Ocidente.

Morreu a mãe da Barbie, que jamais
a viu, assim anatomicamente imutável,
padecer de uma gravidez adolescente.
A Barbie é sabida e deve ter tido educação
sexual. Que fará ela, com o Ken
no regresso de tantas festas?

Nem paixão, nem desgosto, nem fome
ou uma boa tareia dos adultos, alteram
a sua fábula de plástico, muito menos
fabulosa que a Branca de Neve ou a
Bela Adormecida, onde existiam
humanas bruxas, vencidas maldições
e príncipes que davam beijos ao acordar.

Morreu a mãe da Barbie, cedo demais
para inventar uma Barbie de burka,
ou de explosivos escondidos no cinto. No
fim da vida continuava a vender milhões
de próteses mamárias, na sequência da sua
própria mastectomia. Coisas sem brilho,
impossíveis de acontecer
à Barbie.

Inês Lourenço (n. 1942), in Logros Consentidos. «Só os mais desatentos estranharão o tom desabrido, se não mesmo programático, em que se firma esta escrita. (...) Estamos perante uma escrita que sabe muito bem por onde não quer ir e que se dispõe a execrar um contexto literário concreto e reconhecível. Mais precisamente, e de um modo não poucas vezes cirúrgico, são vilipendiados todos aqueles que «encenam como velhos profetas / tardias formas de beleza / extinta - e fazem do verso / um ritual nado-morto / de pequenos afectos». Concorde-se ou não com esta postura «bélica», temos de reconhecer que são inúmeros os alvos possíveis da autora (...). De facto, é notável a veemência com que Inês Lourenço resume e denuncia este «pequeno país de bravia / palavra, sofrida crueza / de mato ardido e estrumes, sucatas, / detritos» (...). Dir-se-ia que a ambiguidade - pretensa característica essencial da linguagem poética - se deixa eficazmente substituir por uma clareza irredutível, capaz mesmo de fazer da redundância uma mais-valia literária» (Manuel de Freitas, Expresso 2 Julho 2005). «Um inventário tenso, irónico, à Chostakovitch, de lugares de memória, físicos e mentais, se desenvolve, revelando a apoeticidade do que se referencia como belo, poético ou contemporâneo (...). Poesia de análise do quotidiano, mas encontrando nele, por si e em si, um neobucolismo, já que o posicionamento observatório do sujeito da poesia de Inês Lourenço prefere-o como ponto de comparação para dele observar o vazio - de actos, de atitudes, de uma beleza que o sustente» (Pedro Sena-Lino, in Público, 10 Setembro 2005).

1 comentário:

Jorge Melícias disse...

Impagável este trecho: "(...)Dir-se-ia que a ambiguidade - pretensa característica essencial da linguagem poética - se deixa eficazmente substituir por uma clareza irredutível, capaz mesmo de fazer da redundância uma mais-valia literária». Volta Ruth Marlene que estás perdoada!!!