Pudéssemos nós compreender
porque é que o outro raramente
é uma preocupação sincera
em nossas vidas
mas que são raras as vezes
em que não o queremos foder,
então alcançaríamos o significado
da existência que levamos,
seríamos o próprio deus
que nos fez à sua imagem.
Passado e futuro seriam o mesmo
e o presente ninguém.
E o vinho que um homem bebe
(enquanto observa o seu filho
a brincar às existências,
como uma garrafa que nunca vaza)
haveria de ser tão vão
quanto uma oportunidade
perdida em que a memória não sabe onde.
O filho seria o seu
próprio cadáver rejuvenescido.
Pudéssemos nós compreender,
assim como se faz um filho,
tão ao gosto popular.
Paulo José Miranda (n. 1965), in O Tabaco de Deus. «A poesia de Paulo José Miranda tem uma espécie de opacidade que a torna distante, impermeável, e lhe confere uma monotonia que não seduz. Se estivermos dispostos a aceitar o seu jogo, iremos descobrir que há virtudes nesta sobriedade. (...) Por outro lado, esta poesia precisa de ser apreendida no seu modo de relação com o conhecimento e com uma saber que lhe fornece matéria de elaboração. Por outras palavras: ela procura, mesmo na referência imediata e na contingência, uma origem que não é histórica, um saber intemporal, como é o das narrativas míticas» (António Guerreiro, in Expresso). «Sena e Fernandes Jorge afirmam-se, deste modo, como elos de uma tradição de realismo e circunstancialidade, onde Paulo José Miranda vem inscrever a sua poesia, "voltada para a banalidade do quotidiano, das suas vozes enganadoramente tranquilizantes" (Guimarães, 1998) e marcada pelo "insistente recurso a um tom melancólico a acenar para o vazio do quotidiano urbano depressivo" (Bastos, 1998). (...) Dando expressão a este conflito entre literatura e vida, na poesia de Paulo José Miranda é ainda detectável a desconfiança face à "palavra impostora", a qual se estende ao literário no que este tem de menor. É que, se por um lado a literatura pode ser um "vício atroz", por outro lado deve ter-se presente que para a literatura conta sempre muito mais a vida do que a própria literatura, conforme se pode inferir de um poema acerca dos protocolos devidos na leitura onde se afrima, por exemplo, que "para um critério do poema não bastam os argumentos do poema"» (José Ricardo Nunes, in 9 Poetas para o Século XXI).
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