Acontece-me por vezes ser surpreendido pelos restos, pelo
que fica para lá do aproveitável. Certos poetas, não necessariamente os que
publicaram pouco e deixaram muitos inéditos, interessam-me mais pela
lateralidade do que pelo chamado corpo canónico do seu trabalho. Aos restos, os
críticos tanto podem chamar “poemas de valor duvidoso” como “poemas de valor
porventura menor”. Estou-me nas tintas, até porque tenho há muito para mim que
o valor de um poema está mais no que diz a quem o lê do que no que alguns
querem que ele diga a quem nem sequer se dá ao trabalho de o ler. Ao regressar
a Cristovam Pavia, voltei a deparar-me com os restos de um poeta a quem
agradeço toda a comida deixada no prato. Confesso que prefiro essa à outra,
vá lá perceber porquê. Exemplos:
Construiu a poesia como uma casa
E fechou as janelas por dentro.
E ficou fechado lá dentro.
Depois foram abertas todas as torneiras
E a casa desceu no espaço
Como uma gota de água.
***
O Senhor que foi à fonte
Encontrou um lubizonte
Que se abespinhou com ele…
Foram os dois para um talho
Comer carne de porcalho
E também de um urso reles
Comeram pêlos e peles
E através de um discurso
Ressuscitaram o urso
E o urso deu cabo deles.
***
LITANIA DA RUA DOS FANQUEIROS
Ó porque será este chulé ibérico
Em Espanha é pitoresco mas aqui é pindérico
Ó Rua dos Fanqueiros
Ó Salazar com teu rebanho de sacristas
Pensar que isto já foi terra de sardinha assada e de
fadistas
Ó Rua dos
Fanqueiros
Ó Lisboa ó Lisboa enjoada e indecente
Ó cidade sifilítica, são carochas ou gente?
Ó rua dos
Fanqueiros
Ó Portugal minha pátria de meia-tigela
— Aqui para nós, passa-se tão bem sem ela!
***
Escrevo em papel de retrete
Os meus ditos poemáticos,
Meus poemas também ditos
Meus por assim dizer escritos
Escritos porém na retrete
Porquê porém, como o frete
De rimar retrete e gritos
Que mais não são que soluços
Pruridos de literatura
Da alma estéril e dura
Porquê soluços? Arrotos,
Para dizer mais chãmente…
(Falta rima para arrotos:
Embora literariamente,
Talvez o mais coerente
Ainda seja: esgotos.)
São brevíssimos exemplos de um poeta descomprometido, sem constrangimentos
formais, temáticos, sem preocupações de organização ou coerência. Muito provavelmente,
estes poemas são ocasionais, não foram escritos a pensar num livro, surgiram
livremente, de um improviso, com a espontaneidade de um arroto. Para mim, isto é
o que há de mais belo na poesia. O resto é escrita criativa.
2 comentários:
Um poeta de quem a obra conhecida é feita apenas de restos é José Bação Leal, sobre quem Ruy Belo escreveu. Se ainda não conheces tens de conhecer.
Conheço alguns desses restos, sim. :-)
Saúde,
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