Para começar tirem-me este trapo da cara, que faz cócegas
e amortalhem nele o meu gato e enterrem-no
ali onde era o meu jardim cromático.
Levem a coroa de latão de cima do meu peito
e atirem-na às estátuas erguidas no entulho,
e ofereçam os laços às putas, para que com eles se enfeitem.
Rezem as orações a um telefone antiquado e sem fio
ou embrulhem-nas num lenço de assoar cheio de farelos
para os estúpidos peixes do charco.
O Bispo que fique em casa e se emborrache,
dêem-lhe uma garrafa de rum
(o sermão vai fazer-lhe sede).
E deixem-me em paz com lápides e chapéus altos!
Com o belo basalto pavimentem uma viela
onde ninguém more,
uma Ruazinha para pássaros.
Na minha mala há muito papel amarelo para o meu primo miúdo
fazer com ele avionettes que hão-de voar, bonitas, da ponte
e ir mergulhar no rio.
O mais que fica (umas cuecas, um isqueiro, uma linda opala
e um despertador) isso é para oferecer a Calístenes, o trapeiro,
com a devida gorjeta.
Quanto à ressurreição da carne, entretanto, e à vida eterna,
dessas coisas trato eu, se estão de acordo:
É cá comigo, não acham? Então, adeus!
Na banca de cabeceira há ainda alguns cigarros.
Cristovam Pavia, in Poesia, edição de Joana Morais Varela, prefácio de J. B. Martinho, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Setembro de 2010, pp. 190-191. Segundo nota: Presumivelmente datado de 1956, no Hospital Militar da Estrela, em Lisboa. Manuscrito: no espólio do poeta, em duas folhas soltas. Edita-se pela primeira vez. Cristovam Pavia, pseudónimo de Francisco António Lahmeyer Flores Bugalho, nasceu em Lisboa a 7 de Outubro de 1933. Publicou um único livro em vida: 35 Poemas (1959). Suicidou-se a 13 de Outubro de 1968.
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