Num breve ensaio intitulado A Invenção da Teatralidade
(Deriva, Novembro de 2009), Jean-Pierre Sarrazac afirma que «o texto tem
obrigatoriamente no seio da representação uma função e um estatuto distintos
dos das outras componentes… Em primeiro lugar, por defeito: o texto é o único
elemento que deixa de existir por si próprio – enquanto texto escrito – no acto
da representação; ele transforma-se, metamorfoseia-se, podendo mesmo anular-se
durante o tempo em que se manifesta… Depois, por excesso: o texto é invasivo de
uma forma muito diferente de todo e qualquer outro elemento presente em cena –
através dos corpos, das vozes, do espaço, e mesmo no espírito dos espectadores
que podem dele ter tido conhecimento antes da representação» (pp. 37-38). Independentemente
deste conhecimento prévio, podemos olhar para o texto dramático já como uma espécie
de palco sobre o qual encenador e actores exercerão a sua liberdade
interpretativa. Ao contrário do texto poético, que coloca em relação
directa autor e leitor através do poema, o texto dramático pressupõe entre o
autor e o público alguns intermediários: encenador/actor. Esta relação talvez
condicione a escrita, na medida em que, consciente da complexidade relacional
do seu texto, o dramaturgo talvez parta para a escrita já na perspectiva de uma
representação (o que é diferente de partir para a escrita com o propósito único
de vir a ser lido). Apoiando-se no filme This Land is Mine (1943), de Jean
Renoir, para a concepção de Sabotage (Douda Correria, Junho de 2014), Miguel
Castro Caldas (n. 1972) oferece ao leitor, o primeiro dos “públicos”, uma
possibilidade de enquadramento que pode simplificar a leitura. Está implícito neste processo uma sabotagem do próprio
texto, o que faz do livro de Castro Caldas um curioso objecto de reflexão sobre
os mecanismos da construção dramatúrgica. O leitor menos
preguiçoso tem a possibilidade de satisfazer a curiosidade vendo o filme (acessível,
desde logo, no Youtube), embora não se imponha que o veja para entender o
texto. Sucede que vendo-o, a leitura saboreia-se com outro gosto: oferece-se à
imaginação um cenário onde as tensões se intensificam, podendo inclusive os
pormenores mais datáveis ser ultrapassados por uma rede de associações que
actualizam a narrativa à luz dos nossos dias. O tom denunciadamente propagandístico
do filme de Renoir não é desrespeitado, embora readquira uma força que a raiva do
leitor actual, por certo também ele vítima de falsas acusações, alimentará com
aquele sentido de injustiça onde o réu que é vítima vai descobrir a coragem que
desconhecia possuir. Quem é Albert Lory? É um professor de liceu que anda pelos
quarenta, vive com a mãe, de ar cândido e algo desajustado. Tem uma paixão,
Louise, noiva do empresário George Lambert, colaborador da força ocupadora
(naquele tempo, os nazis), irmã do resistente Paul Martin (que foi denunciado
por Lambert). Lambert aparece morto e as suspeitas recaem sobre Lory. Crime
passional? As interrogações sobre a justiça, e a forma como o poder exerce
sobre os cidadãos os seus padrões de rectidão, percorrem o texto à superfície. Miguel
Castro Caldas esquiva-se a uma replicação das teses anteriormente afloradas
pelo filme de Renoir, preferindo recentrar-se noutras dimensões do conflito:
«esta coisa de se dizer sagrado é o amor, basta googlar, quatrocentas mil
entradas e em inglês cento e dezoito milhões. sagrado o amor, sagrada a amizade,
sagrada a propriedade, sagrado o matrimónio, mas o amor pode ser uma coisa terrível,
pode ser uma coisa criminosa, a começar no amor de mãe». E o resultado é uma
explosão da personagem de Albert Lory, que não é apenas vítima de uma falsa
acusação nem de uma situação fortemente condicionadora das acções individuais,
mas também vítima de si próprio, de trazer calada nos calabouços da resignação «uma
frase daquelas que se gravam na pedra / a sabotagem é a única arma que resta a
um povo derrotado». Já não lhe interessa a acusação de que é vítima, pouco lhe
importa se julgam que matou ou não. Tem a possibilidade de sair ilibado mas não
quer, prefere exorcizar-se perante o seu público, recusa-se «a ser bombeiro da
sobrevivência». Albert Lory quer viver e, neste tribunal, readquire, de
facto, uma vivacidade estonteante. A defesa de Albert Lory, apesar de basear-se
no filme This Land is Mine, tem muito mais que ver com a Defesa de John
Brown, de Henry David Thoreau, porque o que aqui está em causa é a consciência
individual daquele que, isolado perante o poder, sabe o que o espera se desafiar
a lei: o desprezo e a solidão são o imposto a pagar pela consciência livre.
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