quinta-feira, 20 de novembro de 2014

OURO E CINZA


Desconfio que um dos problemas mais frequentemente colocados ao cronista seja a iminente desactualização dos seus textos. A crónica oferece a perspectiva que do mundo tem quem a escreve, sendo raras as ocasiões em que transcende as barreiras do tempo e do espaço do autor para poder fixar-se com a universalidade que a grande obra exige. Ouro e Cinza – Crónicas 2002-2012 (Tinta-da-China, Julho de 2014) colige alguns desses raros momentos, fruto da arte e do engenho de Paulo Varela Gomes (n. 1952). Sendo do seu tempo, estas crónicas nunca a ele se circunscrevem irremediavelmente. Isto porque o autor consegue olhar para o presente sem prescindir do passado e com a humilde sabedoria de deixar ao futuro as suas próprias conclusões. A maioria dos textos provém do jornal Público, mas há deles que foram publicados inicialmente nas revistas Os Meus Livros, Comtextos e Pública. O critério cronológico não ditou a organização. Ainda bem. Os trechos foram antes agrupados em seis grupos que correspondem a outros tantos temas de interesse: Bichos, Com os Olhos, Este País, Indianas, O Campo, O Tempo. A grande vantagem desta opção é evitar uma leitura dispersiva; isto é, concentra os pontos de vista ampliando, desse modo, a panorâmica sobre um tema em concreto. No primeiro conjunto encontramos textos sobre os direitos dos animais, textos de uma militância assumida que não descarta a utopia:
«Às vezes gostaria de andar com uma camioneta muito grande a recolher todas as crianças, cães e outros seres vivos vadios que não sabem falar. Depois levava-os todos para as Maldivas, os Açores ou Madagáscar, que sempre é maior, e deixava-os à solta sem trabalho nem escola, sem horários e sem regras de trânsito, sem donos e sem patrões, para que andassem no mar e nos bosques. Fá-lo-ia apesar de saber que um dia alguma coisa haveria de correr drasticamente mal e Deus teria de correr com eles, recomeçando esta grande chatice toda outra vez» (p. 24).
Sem prescindir dos exemplos que a realidade histórica oferece, Paulo Varela Gomes excede-os, funda parábolas e ironiza, tem a capacidade de com uma linguagem simples e depurada acrescentar sonho à realidade. A alegria de viver e de se estar vivo pode fundar uma ética que não oculte os horrores e a maldade da existência, apelando antes à conservação da beleza, à preservação de uma identidade e dos valores que enformam essa identidade. Apelando, sobretudo, à resistência de um olhar que aceite todas as cores como inerentes ao mundo, um mundo que não é a preto e branco, que não é dicotómico, alicerçado na alteridade, na complexidade, na diversidade. O país aparece perspectivado com polémica e desencanto: os eleitores são estúpidos, devemos querer voltar a ser como os espanhóis, a juventude tornou-se uma das grandes desgraças do país, esqueçam a treta da produtividade e da dívida pública. Descontextualizadas, podem parecer frases frívolas. Mas por detrás delas há a consciência de um outro vazio:
«Não tenho culpa do que é hoje este país e o regime que o representa: militei e votei sempre em partidos que apregoavam querer outro tipo de regime e deixei de militar e de votar quando vi esses partidos tornarem-se tão legitimistas como os outros.
Espero um rebate de consciência política por parte destes políticos, ou o aparecimento de outros. Faço como muitos portugueses: espero por D. Sebastião, desempenho a minha profissão o melhor que posso, e penso em emigrar» (p. 87).
Não admira, portanto, que a maior parte do livro seja ocupada com crónicas onde a Índia aparece em pano de fundo. São notáveis as paisagens traçadas por Paulo Varela Gomes, quer quando se perde na agitação das cidades, quer quando se recolhe nos resquícios de uma antiguidade que o progresso tem vindo a aniquilar. A desconfiança acerca do progresso é, aliás, uma das características mais marcantes destas crónicas, sobretudo quando entendemos por progresso algo oposto à preservação e à conservação dos patrimónios cultural e natural. Julgo que seria um erro tentar medir nestas crónicas os índices de optimismo ou de pessimismo do seu autor. Não se trata disso. O tom nostálgico é transversal, mas a nostalgia tem tanto de optimismo acerca do passado como de pessimismo quanto ao futuro. O aspecto mais tocante de Ouro e Cinza talvez esteja entre o que o tempo consome e o que no tempo perdura, as contradições de uma humanidade que tão bem se reconhece na definição de campo partilhada a páginas 202:
«O campo, para mim, é a revivescência permanente de uma recordação imóvel. Sucede isto porque no campo, por mais que tudo mude, tudo está sempre no princípio, silencioso e quieto. É da ordem das coisas que não haja tempo».

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