Palavras trocadas na caixa de comentários deste post reenviaram-me para O Anti-Édipo - Capitalismo e Esquizofrenia, de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Sem delongas, deixo alguns sublinhados (edição Assírio & Alvim, tradução de Joana Moraes Varela e Manuel Carrilho):
Isto funciona por toda a parte: umas vezes sem parar, outras descontinuamente. Isto respira, isto aquece, isto come. Isto caga, isto fode. Mas que asneira ter dito o isto. O que há por toda a parte são mas é máquinas, e sem qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com as suas ligações e conexões. (p. 7)
O desejo faz constantemente a ligação de fluxos contínuos e de objectos parciais essencialmente fragmentários e fragmentados. O desejo faz correr, corre e corta. «Amo tudo o que corre, mesmo o fluxo menstrual que arrasta os ovos não fecundados», diz Miller no seu cântico do desejo. Bolsa das águas e cálculo dos rins; fluxo de cabelo, fluxo de saliva, fluxo de esperma, de merda ou de mijo, que são produzidos por objectos parciais, sempre cortados por outros objectos parciais que, por sua vez, produzem outros fluxos, que são ainda re-cortados por outros objectos parciais. Qualquer «objecto» supõe a continuidade de um fluxo, e qualquer fluxo a fragmentação de um objecto. Não há dúvida que cada máquina-órgão interpreta o mundo inteiro a partir do seu próprio fluxo, a partir da energia que dela flui: o olho interpreta tudo em termos de ver - o falar, o ouvir, o cagar, o foder... Mas há sempre uma conexão que se estabelece com outra máquina, numa transversal onde a primeira corta o fluxo da outra ou «vê» o seu fluxo cortado. (p. 11)
A sociedade constrói o seu próprio delírio ao registar o processo de produção mas não é um delírio da consciência, ou antes, a falsa consciência é a consciência verdadeira de um falso movimento, percepção verdadeira de um movimento objectivo aparente, percepção verdadeira do movimento que se produz na superfície do registo. O capital é, de facto, o corpo sem órgãos do capitalista, ou antes, do ser capitalista. Enquanto tal, o capital é não só a substância fluida e petrificada do dinheiro, mas vai também dar à esterilidade do dinheiro a forma com que este produz dinheiro. (p. 15)
Como diz Reich, o que surpreende não é que uns roubem e outros façam greve, mas que os explorados e os esfomeados não estejam permanentemente em greve; porque é que há homens que suportam há tanto tempo a exploração, a humilhação, a escravatura, e que chegam ao ponto de as querer não só para os outros, mas também para si próprios? Nunca Reich mostrou ser um tão grande pensador como quando se recusa a invocar o desconhecimento ou a ilusão das massas ao explicar o fascismo, e exige uma explicação pelo desejo, em termos de desejo: não, as massas não foram enganadas, elas desejaram o fascismo num certo momento, em determinadas circunstâncias, e é isto que é necessário explicar, essa perversão do desejo gregário. (p. 33)
Os termos do Édipo não formam um triângulo, porque estão espalhados por todos os cantos do campo social, a mãe ao colo do professor, o pai ao lado do coronel. O fantasma de grupo está ligado, maquinado, ao socius. Ser enrabado pelo socius, desejar ser enrabado pelo socius, não deriva nem do pai nem da mãe, embora o pai e a mãe desempenhem um papel secundário como agentes subalternos de transmissão ou de execução. (p. 64)
Não é uma metáfora dizer que Hitler entesava os fascistas. Não é uma metáfora dizer que uma operação bancária ou da bolsa, um título, um cupão, uma nota de crédito, dão tesão, além dos banqueiros, a muita gente. E o dinheiro germinador, o dinheiro que produz dinheiro? Há «complexos» económico-sociais que também são verdadeiros complexos do inconsciente, e que são capazes de comunicar uma certa volúpia a toda a sua hierarquia (o complexo militar industrial). E a ideologia, o Édipo e o phallus não são para aqui chamados, porque eles em vez de estarem no princípio, dependem de tudo isto. O que há são fluxos, stocks, cortes e flutuações de fluxos; o desejo está sempre onde quer que haja algo a fluir e a correr, arrastando não só sujeitos interessados, mas também sujeitos embriagados ou adormecidos, para encruzilhadas mortais. (p. 109)
Para já, fico-me por aqui fazendo minhas (tomaria) as palavras da parelha Deleuze-Guattari. Desenvolverei assim que possa.
4 comentários:
ora aí está!
as massas desejam o fascismo; hitler entesava os fascistas assim como as operações bancárias dão tesão aos banqueiros...
Não percebo (a sério que não percebo) como é que tudo isto, que no fundo está sempre a repetir-se na história, será possível no tal futuro em que as pessoas serão substituídas por máquinas ou transformar-se-ão em máquinas transmissoras de likes, como diz no post abaixo, e o que me parece ser a sua grande preocupação ou tristeza. Porque são exactamente as pessoas que desejam isto, e desejam-no porque são pessoas.
isto parece-me ser absolutamente humano.
mas posso ter compreendido tudo mal. o que aliás é normal.
Eu já parto do princípio de que as pessoas são máquinas, pelo que não haverá substituição. O que eu pretendia que estivesse em causa no post é a desmaterialização do mundo, ou seja, tal como sucede nas imagens aludidas (filme + fotografias) a transformação do mundo numa coisa inorgânica, uma rede, onde tudo será programado para a eficiência. Nas máquinas ainda existe a falha, depois concerta-se. O meu tema é a inorganicidade, por assim dizer, das relações. Você deixa de ser uma máquina-desejante, passa a ser um "programa". O tesão estará, precisamente, em cumprir-se enquanto programa. Não será desejo de toque, será desejo de eficiência. Veja o que acontece aqui nestas caixas de comentários. Você sem rosto nem nome, pode ser uma coisa qualquer. Para mim é apenas uma máquina que reage. Eu sou outra máquina com rosto e nome, uma máquina identificável. A minha matéria é a minha identidade. Não me defino por ser caixeiro de primeira categoria (é essa a minha profissão porque é isso que está no contrato de trabalho, nem escritor, nem weblogger, nem outra ocupação mais ou menos profissional qualquer). Defino pela minha matéria: que come, caga, fode, sente, deseja.
Calma...
Mas são máquinas que apesar de tudo sentem, reagem, pensam, etc., como também diz. e se calhar sempre foram. Logo, não haverá substituição porque essa substituição é impossível. E se calhar aqui estamos a dizer a mesma coisa. Simplesmente temos uma visão diferente do que é o ser humanos e isso é normal, acho eu.
em que momento é que o mundo foi diferente daquilo que é hoje? fala na transformação do mundo numa rede onde tudo será programado para a eficiência. A eficiência por acaso foi uma invenção do capitalismo? uma invenção moderna? não me parece. o ser humano sempre a procurou. Assim, o mundo é aquilo que sempre foi, só evolui a técnica, mais nada. é isto que eu me limito a dizer.
Os totalitarismos estão sempre a aparecer e a desaparecer.
percebo o que quer dizer com o facto de esta nossa forma de comunicação se assemelhar a qualquer coisa mecânica. Mas em que é que isso difere de outras formas de comunicação? Nunca lhe aconteceu estar a frente a frente com uma pessoa e parecer que está a falar com um robot? E a nossa geração, ou seja, as pessoas que vivem actualmente (aqui entenda-se geração como uma coisa mais geral, pessoas que vivem no final do século XX, início do século XXI) terão sido as primeiras a experimentar estes sentimentos? acho que não.
olhe, isso acontece-me muitas vezes.
o ser humano é uma máquina muito especial, faz greve e pode ser escravizado e desde o tempo das cavernas que procura a eficiência.
as máquinas não humanas não fazem greve, não podem ser escravizadas, e são eficientes apenas na medida em que foram programadas e nada procuram que não lhe seja mandado procurar.
Parece-me que há aqui uma diferença
Que poder é que se pode exercer sobre algo que não pensa? que não reage?
1. «não haverá substituição porque essa substituição é impossível»
quando chega a uma portagem e tem máquinas em vez de pessoas o que houve? quando num supermercado tem máquinas onde passa os produtos e às quais paga em vez dos tradicionais caixeiros o que houve? posso dar-lhe muitos mais exemplos práticos de situações em que as pessoas são substituídas por máquinas, embora, como lhe disse, não seja essa a minha questão. as pessoas são elas mesmas máquinas, a minha questão é a "desmaterialização" das relações.
2. em que momento é que o mundo foi diferente daquilo que é hoje?
quando você não tinha onde manifestar-se publicamente sem rosto o mundo era diferente. quando as pessoas eram queimadas e torturadas na praça pública o mundo era diferente. o mundo está sempre a mudar, dentro do mundo permanecem vícios e virtudes, valores e misérias humanas. mas o mundo de hoje não é definitivamente igual ao da revolução industrial, tal como esse não foi igual ao dos descobrimentos, etc...
3. A eficiência por acaso foi uma invenção do capitalismo?
não. o capitalismo inventou outra coisa: a esquizofrenia do erro. (mas esta é outra questão, aliás muito distante do propósito inicial)
4. Nunca lhe aconteceu estar a frente a frente com uma pessoa e parecer que está a falar com um robot?
Não. sinto sempre que estou perante pessoas quando estou perante pessoas. se não vê diferença entre esta forma de comunicação e comunicar presencialmente não compreenderá as diferenças.
5. Que poder é que se pode exercer sobre algo que não pensa? que não reage?
exactamente o poder que Babycakes Romero regista nas suas imagens, o poder da alienação, o poder da estupidificação, o poder da manipulação, o poder da superficialização.........
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