Não é difícil simpatizar com o psiquiatra de Memória de
Elefante (1979), livro de estreia de António Lobo Antunes (n. 1942). Pai de
duas filhas, separado da mulher, ex-combatente em África, carrega pelos lugares
de Lisboa e arredores a sua solidão. Olha para si próprio sem ponta de
autocomiseração — «merda sobre a merda de que sou feito» (p. 110)—, ao mesmo
tempo que lança sobre os outros uma certa sobranceria. São assim as almas mais frágeis: indigentes dentro de si próprias, rainhas do universo na relação com os outros. A sua solidão, maior das
dores, vem de uma incapacidade para agir em conformidade com o pensamento. Ama
a mulher, mas é incapaz de dizê-lo. Quer mandar à merda o grupo com quem faz
análise, mas acaba por cumprimentar todos com convencional deferência. A
páginas 123 (5.ª edição, Vega, 1980), como que se diagnostica: «quando eu
conseguir vencer a minha cobardia, o meu egoísmo, esta lama de merda que me
impede de dar-te e de me dar» (p. 123). Tolhido por recalcamentos vários, ele
tropeça amiúde em obstáculos que o impedem de se afirmar e de ser livre. Mas censura permanentemente o mundo à sua volta, sobretudo quando esse mundo mais se lhe assemelha. Os obstáculos estão todos dentro dele, e a sua maior solidão será, precisamente, o
combate a travar consigo próprio. Logo no início, p. 26, o seu drama é resumido
num curtíssimo diálogo: «— Deolinda, informou-a ele, estou a tocar no fundo. / Ela abanou o rosto em bico de tartaruga bondosa: / — Nunca mais tem fim essa descida?» A resposta, em forma de pergunta, é certeira. O fundo deste homem é a sua própria natureza, a sua
insatisfação advém de uma incompatibilidade entre o que sabe ser, ou julga saber, e o que é capaz de ser. A descida não tem fundo
porque é uma descida íntima, interior. Não é uma descida aos infernos do mundo,
mas sim ao inferno da pessoa humana. As dores do psiquiatra não configuram os
aspectos depressivos de uma vulgar separação, não têm na sua origem traumas de
guerra. Todos esses elementos biográficos perdem força quando lhe escutamos a
memória de uma frase (p. 49): «Cada vez mais detestava emocionar-me: sinal de que
envelheço, verificou, dando cumprimento à frase da mãe atirada ao ar da sala
com profética solenidade: / — Com um feitio assim hás-de acabar sozinho como um cão». Ora, diz o povo e com razão, que o que não é defeito é de
feitio. O psiquiatra é o seu maior problema, ele é para si próprio o mais exigente
dos desafios, por não poder ser um desafio profissional, por ser ele próprio a
ter que conviver com as contradições da relação entre aquele que observa e
aquele que é observado. A escrita, enquanto projecto, acaba por ter na sua vida uma dimensão claramente terapêutica, embora ele, mais uma vez, hesite em aceitá-la como tal
com considerações que aparentam autocríticas: «— Estava cá a magicar que escrever é um bocado fazer
respiração artificial ao dicionário de Moraes, à gramática da 4.ª classe e aos
restantes jazigos de palavras defuntas, e eu ora cheio ora vazio de oxigénio,
aparvalhado de dúvidas» (p. 59). E, de um modo talvez menos enviesado, questiona-se: «E porque é que só sei gostar, perguntou-se examinando as
bolhas de gás pegadas à parede do vidro, porque é que só sei dizer que gosto
através dos rodriguinhos de perífrases e metáforas e imagens, da preocupação de
alindar, de pôr franjas de crochet nos sentimentos, de verter a exaltação e a
angústia na cadência pindérica do fado menor, alma a gingar, piegas, à Correia
de Oliveira de samarra, se tudo isto é limpo, claro, directo, sem precisão de
bonitezas, enxuto como um Giacometi (sic) numa sala vazia e tão simplesmente
eloquente como ele: depor palavras aos pés de uma escultura equivale às flores
inúteis que se entregam aos mortos ou à dança da chuva em torno de um poço
cheio: chiça para mim e para o romantismo meloso que me corre nas veias, minha
eterna dificuldade em proferir palavras secas e exactas como pedras» (p. 101).
Justifica-se a citação por estarmos naquele domínio em que a personagem
assume o papel de criticar o seu autor. Há uma certa honestidade no facto,
podemos até sublinhar a autenticidade do processo, mas a verdade é que para o
leitor fica difícil, em tão poucas páginas, ter de lidar com tantas comparações
onde entram nomes de pintores, poetas, músicos, cineastas. É como se o autor
fosse incapaz de escrever sem recorrer à biblioteca. Dito de outro modo, é como
se fosse incapaz de existir sem tipificar o mundo a partir das suas referências
literárias. Talvez esse seja o lado menos simpático do psiquiatra que Lobo
Antunes nos ofereceu no seu primeiro livro, conquanto nos seja possível
vislumbrar oscilações de empatia numa narrativa feita à base de «cegos de
Brueghel a tactear» (p. 146).
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