quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

MEMÓRIA DE ELEFANTE

Não é difícil simpatizar com o psiquiatra de Memória de Elefante (1979), livro de estreia de António Lobo Antunes (n. 1942). Pai de duas filhas, separado da mulher, ex-combatente em África, carrega pelos lugares de Lisboa e arredores a sua solidão. Olha para si próprio sem ponta de autocomiseração — «merda sobre a merda de que sou feito» (p. 110)—, ao mesmo tempo que lança sobre os outros uma certa sobranceria. São assim as almas mais frágeis: indigentes dentro de si próprias, rainhas do universo na relação com os outros. A sua solidão, maior das dores, vem de uma incapacidade para agir em conformidade com o pensamento. Ama a mulher, mas é incapaz de dizê-lo. Quer mandar à merda o grupo com quem faz análise, mas acaba por cumprimentar todos com convencional deferência. A páginas 123 (5.ª edição, Vega, 1980), como que se diagnostica: «quando eu conseguir vencer a minha cobardia, o meu egoísmo, esta lama de merda que me impede de dar-te e de me dar» (p. 123). Tolhido por recalcamentos vários, ele tropeça amiúde em obstáculos que o impedem de se afirmar e de ser livre. Mas censura permanentemente o mundo à sua volta, sobretudo quando esse mundo mais se lhe assemelha. Os obstáculos estão todos dentro dele, e a sua maior solidão será, precisamente, o combate a travar consigo próprio. Logo no início, p. 26, o seu drama é resumido num curtíssimo diálogo: «— Deolinda, informou-a ele, estou a tocar no fundo. / Ela abanou o rosto em bico de tartaruga bondosa: / — Nunca mais tem fim essa descida?» A resposta, em forma de pergunta, é certeira. O fundo deste homem é a sua própria natureza, a sua insatisfação advém de uma incompatibilidade entre o que sabe ser, ou julga saber, e o que é capaz de ser. A descida não tem fundo porque é uma descida íntima, interior. Não é uma descida aos infernos do mundo, mas sim ao inferno da pessoa humana. As dores do psiquiatra não configuram os aspectos depressivos de uma vulgar separação, não têm na sua origem traumas de guerra. Todos esses elementos biográficos perdem força quando lhe escutamos a memória de uma frase (p. 49): «Cada vez mais detestava emocionar-me: sinal de que envelheço, verificou, dando cumprimento à frase da mãe atirada ao ar da sala com profética solenidade: / — Com um feitio assim hás-de acabar sozinho como um cão»Ora, diz o povo e com razão, que o que não é defeito é de feitio. O psiquiatra é o seu maior problema, ele é para si próprio o mais exigente dos desafios, por não poder ser um desafio profissional, por ser ele próprio a ter que conviver com as contradições da relação entre aquele que observa e aquele que é observado. A escrita, enquanto projecto, acaba por ter na sua vida uma dimensão claramente terapêutica, embora ele, mais uma vez, hesite em aceitá-la como tal com considerações que aparentam autocríticas: «— Estava cá a magicar que escrever é um bocado fazer respiração artificial ao dicionário de Moraes, à gramática da 4.ª classe e aos restantes jazigos de palavras defuntas, e eu ora cheio ora vazio de oxigénio, aparvalhado de dúvidas» (p. 59)E, de um modo talvez menos enviesado, questiona-se: «E porque é que só sei gostar, perguntou-se examinando as bolhas de gás pegadas à parede do vidro, porque é que só sei dizer que gosto através dos rodriguinhos de perífrases e metáforas e imagens, da preocupação de alindar, de pôr franjas de crochet nos sentimentos, de verter a exaltação e a angústia na cadência pindérica do fado menor, alma a gingar, piegas, à Correia de Oliveira de samarra, se tudo isto é limpo, claro, directo, sem precisão de bonitezas, enxuto como um Giacometi (sic) numa sala vazia e tão simplesmente eloquente como ele: depor palavras aos pés de uma escultura equivale às flores inúteis que se entregam aos mortos ou à dança da chuva em torno de um poço cheio: chiça para mim e para o romantismo meloso que me corre nas veias, minha eterna dificuldade em proferir palavras secas e exactas como pedras» (p. 101). Justifica-se a citação por estarmos naquele domínio em que a personagem assume o papel de criticar o seu autor. Há uma certa honestidade no facto, podemos até sublinhar a autenticidade do processo, mas a verdade é que para o leitor fica difícil, em tão poucas páginas, ter de lidar com tantas comparações onde entram nomes de pintores, poetas, músicos, cineastas. É como se o autor fosse incapaz de escrever sem recorrer à biblioteca. Dito de outro modo, é como se fosse incapaz de existir sem tipificar o mundo a partir das suas referências literárias. Talvez esse seja o lado menos simpático do psiquiatra que Lobo Antunes nos ofereceu no seu primeiro livro, conquanto nos seja possível vislumbrar oscilações de empatia numa narrativa feita à base de «cegos de Brueghel a tactear» (p. 146).

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