quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

A FALTA SALIENTE


Obstinadamente invisto contra uma corrente contrária
que obstinada investe contra mim uma musa
de saliente falta. Libertar-me bem queria mas não sei
se o medo se a circunstância se a melancolia
me treme quando só o lance resolvia, me limita
quando a imensidão pedia, me oxida o aço à porfia.
Tudo à volta me comprime a uma mesquinha condição
e O'Neill às vezes não existem teu machado de língua afiada,
tuas ensinadas varinas de sinuosas varizes,
tuas empenadas narinas de empinados narizes,
às vezes O'Neill é só o vazio e as suas raízes.

Obstinadamente busco um país que me maravilhe,
um país das maravilhas. Não esta portugalice do ali borda-se,
gato à janela, lindo postal, calçadas e motivos, velhos desdentes,
sim sim, já agora, num sei, sei lá bem, pois bem, já cá não mora.

Obstinadamente busco um país sem história para contar;
confiar que haverá uma mesa e um lugar
onde se perspectivem coisas depois do dia oblongo e da cidadela
tomada; essa mesa e esse lugar nem sequer meus.

Busco qualquer outra coisa que não esse, isso. Busco

a tépida esfera, a plúmbea fronte ou afundar os dedos
num sôfrego e talvez abster-me na insistência
quando a dúvida fosse um sólido na tua cabeça
e já não houvesse tampões para o horror,
talvez sim então sim talvez abster-me.
Os teus poetas não me valem,
os teus poetas não se lhes dá que eu morra.
E esta pluma é um xamã que arde sem se ver
na mandíbula dorida de apertar a palavra,
inexistente sílaba da oclusão. Se houvesse
uma goteira a preservar da noite o cerrar do livro!
Se houvesse maneira de não morrer!

Insisto obstinada e dementemente busco um país.
Esqueço-me da corrente que acomete, falha a previsão
é um fusível, um grifo alcandorado nos cabos de alta tensão.
Penas pesadas as dos mitómanos: serem investidos
numa sociedade sem grifos
onde galifões beijam com saliva viperina
o lábio rubro do inocente efebo
e lambuzam a mordiscadela posterior
com desvelo clínico e libações ordinárias.
Este é o teu país O'Neill, que destrói as ondas e as praias
e descura feridas individuais de beijos sociais,

o mensageiro do amor que as vagas tala
a trazer-te a proposta disjuntiva sem saída:
se a cana do nariz intacta
então a cana de pesca partida.


Daniel Jonas (n. 1973), in Os Fantasmas Inquilinos (2005). «Esta poesia é uma máquina de integrar citações e de multiplicar referências teóricas, dos actos de fala à analítica kantiana do belo. Nada disso, em si, é prova de grande conseguimento e seria um inócuo exercício se não fosse a dimensão de fantasia barroca e a violência de um ímpeto que faz triunfar o absurdo e a dissonância (...). Afastando-se o mais possível da imagem romântica e de qualquer outro tipo de imagem dotada de um valor expressivo (como Gottfried Benn, Daniel Jonas poderia dizer: «Eu não tenho nenhum sentimento»), aproximando-se, antes, dos processos do pensamento, do sentido e da fantasia, a poesia de Daniel Jonas coloca, à sua maneira e através de outras mediações (eminentemente modernistas, tendendo, às vezes, para a antipoesia), a equação de Mallarmé: «Estritamente imaginativo e abstracto, portanto poético»» (António Guerreiro, Expresso, 24 de Setembro de 2005). «Há na poesia de Daniel Jonas uma resistência explícita a qualquer discurso que a pretenda enclausurar num determinado tempo, ou em quaisquer linhagens literárias. É como se o poeta quisesse deliberadamente trocar as voltas ao leitor, confundi-lo, empurrá-lo para um estado de perplexidade em que o desenho mental que os poemas inscrevem no pensamento está sempre a transformar-se noutra coisa. Este efeito de desorientação nasce do facto de ser muito vasta a gama de registos poéticos em que se declina a sua escrita. Tão depressa se aproxima da volúpia barroca (com rimas, sintaxe antiga, vocabulário raro) como se entrega a exasperações românticas sobre o lugar do sujeito no mundo, ou então a súbitas sínteses de poucos versos, de um minimalismo próximo da perfeição dos haikus. Num instante passamos das referências bíblicas e das citações literárias cifradas para a mais prosaica realidade quotidiana» (José Mário Silva, Expresso, 1 de Fevereiro de 2014). 

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