Vale a pena conhecer Ruth Maier (n. 1920 – m. 1942),
jovem austríaca assassinada pelos nazis em Auschwitz. O poeta norueguês Jan
Erik Vold (n. 1939) organizou-lhe os diários num volume intitulado Ruth Maier’s
Diary —A Jewish Girl’s Life in Nazi Europe, impressionante testemunho de um
talento interrompido do qual nos restam hoje a diarística, alguma
correspondência, breves poemas, desenhos e aguarelas. O diário mantido ao longo
da vida começou a ser escrito aos 12 anos, vivia Ruth numa casa onde abundavam
livros e se respirava cultura. Ludwig Maier, o pai, era doutorado em Filosofia
e falava nove línguas. Faleceu de doença em 1933, ou seja, no mesmo ano em que
os diários começam a ser escritos. A ligação de Ruth ao pai era fortíssima, manifestando-se
num vazio que nenhum outro homem conseguiu preencher. «I have a penchant for
older men», escreverá em Janeiro de 1937. Trata-se de uma perda abismal,
recordada amiúde nas páginas mais íntimas e por vezes instigadora de uma
relação menos pacífica com Irma (a mãe). A avó e a irmã são outros familiares omnipresentes,
não sendo esquecidos os tios: Robert, irmão de Ludwig, vivia na Checoslováquia;
Oskar, irmão de Irma, era comunista e residia em Moscovo. Apesar da versão
truncada a que temos acesso, os diários são reveladores de uma personalidade em
formação, inquieta e desassossegada, instável e, como não podia deixar de ser numa
rapariga judia sob jugo nazi, profundamente tocada pela dúvida. Organizados em
três grandes partes generosamente ilustradas, percorrem a vida da autora em
três momentos fundamentais. No primeiro, temos os diários de Viena até à
ocupação Alemã (1933-1938). São tempos relativamente agradáveis e típicos de
uma adolescente em busca de si mesma, questionando-se sobre a sua sexualidade,
talento, inclinações políticas, declarando paixões mais ou menos volúveis, mas
denotando também uma extraordinária percepção sobre o seu tempo histórico. Outro
aspecto interessante é a recorrência a reflexões sobre o sentido da escrita de
um diário: «There are two groups of people that write diaries. The first really are moved to write
by an inner spirit. The others in the secret hope that their diary will one day
be discovered by an unknown muse and become a sensation as — I don’t know — the
classic sentiments of a chaste and modest young girl. Sometimes I’m in the
first group, at other times in the second one» (p. 13). Anos depois, a 7 de
Abril de 1941, escreverá: «I’m not keeping a diary to put down my ‘reflections’,
to immortalise profound ideas. I’m writing in order to resolve my feelings,
wich would otherwise get stuck into me and dig into wounds so that they would
stay open» (p. 321). Mesmo tendo em conta os padrões da época, não deixa
de ser admirável a cultura literária exibida. Leituras de Gorky, Tolstoy, Jack
London, B. Traven, Oscar Wilde, Heine, Goethe, Thomas Mann, Schiller, Dostoevsky
e Trótski sustentam os pensamentos da casta e modesta rapariga. Herr Professor
Herbert Williger, mestre de Latim, também ter-se-á impressionado. A memória do
professor Williger acompanhará Ruth Maier enquanto vestígio de um amor falhado,
menos por vontade dele do que por resistência dela. «I love him. Like a
father.» — confessa a 8 de Abril de 1937. Apontamentos quotidianos, reflexões
existenciais sobre a morte e o suicídio, dúvidas identitárias sobre o seu lugar
no mundo, sentimentos de empatia pelos “humilhados e ofendidos” e evocações
frequentes da figura paterna ocupam a jovem até à ocupação Alemã. O brilho dos
primeiros anos esvanece, o nazismo arrasta os judeus num labirinto de questões acerca
da natureza humana. O discurso torna-se muito mais denso e a palavra ultraje
vulgariza-se. Datam de Outubro de 1938 estes desabafos de uma lucidez premonitória:
«We have no weapons and, by God, we cannot defend ourselves. You can send our fathers to Dachau, poison our
mothers with gas, and our sons have to crawl across the border like animals!» (p.
97) A consequência imediata será a separação da família. A avó, a mãe e a irmã acabam
em Inglaterra, Ruth Maier refugia-se na Noruega. O objectivo era continuar os
estudos, mas o estigma de refugiada judia não contribuirá para a mais saudável
das integrações. A segunda parte deste volume contempla os primeiros tempos na
Noruega a partir de um conjunto de cartas para a família em Inglaterra. Preocupações
com a educação e incertezas quanto ao futuro marcam o tom geral da
correspondência, embora sejam inúmeras e multicoloridas as descrições dos
lugares frequentados, partilhas literárias (Ibsen, Hamsun), avaliações dos
noruegueses enquanto povo e do seu papel na Guerra. A relação com a família de
acolhimento deteriora-se ao longo dos anos, indo do fascínio e da admiração
iniciais ao fastio e à decepção finais. A condição de emigrante impele-a progressivamente
para o isolamento e para a solidão. Se ao ter descoberto uma paixão da mãe em
1937 já tinha lamentado a solidão em que vivia, este sentimento intensifica-se agora
encerrando Ruth em momentos introspectivos que lhe dificultam tanto as relações
humanas quanto lhe ferem a auto-estima: «How I long for company, Dittl. Just a single person I could talk
to. Do you not understand that I’m so lonely it’s as if I were living on a fig
tree in the jungle?» (p. 183) Os livros serão refúgio firme até à
derradeira das horas, mas não podem resolver todos os anseios: «There’s a whole
heap of boys in our class. The loveliest array of the most diferente types. But
I have no erotic allure. I’m
quite certain of that. If I were to go around with my bosom ‘half-exposed’,
then maybe men would eye me up, but in my usual dress!... (You ought to know
that I’ve a fabulous body: magnificent! I admire myself every evening in front
of the mirror.) Yes, so I wanted to tell you that I have no sex appeal at all —
I found this out immediately thanks to that intuition which is unique to women»
(p. 195). Refira-se que o “fabulous
body” não seria exagero, tendo mesmo servido de modelo, nos últimos meses de
vida, a artistas tais como o pintor Aasmund Esval ou o escultor Gustav
Vigeland. No entanto, combinações de tédio, repugnância e saudade assaltam-lhe
o humor, perturbam-lhe as emoções, levam-na à depressão. Extraordinários
sublinhados cómicos pontuam, aqui e acolá, a correspondência. Mas a chegada da
guerra e a invasão da Noruega pelos Alemães não podiam senão agravar o
desespero. A terceira e última parte do livro contempla os últimos anos, entre
1940 e 1942. A relação com a poetisa Gunvor Hofmo, a quem devemos a
sobrevivência do espólio, oscila entre a luminosidade de uma réstia de
esperança e a absoluta perdição. Manifestações de ódio aos alemães, apreço pelo
povo norueguês, exemplos de um quotidiano cada vez mais tenso, partilham
relevância com a questão amorosa: «I’m nineteen years old and still I haven’t
had a… lover» (p. 234). Esse espaço vazio será de algum modo ocupado por Gunvor
Hofmo, acompanhado porém de persistentes interrogações sobre uma possível
condição homossexual. Algures entre o desejo e a pura amizade foi sedimentado
este amor, sendo certo que o mesmo nunca varreu por completo a solidão
derradeira. Por vezes, uma fortuita troca de palavras com uma prostituta na rua
afasta o fantasma. Mas o mesmo perseguirá a já não tão casta jovem como uma
sombra: «Gunvor still demands a proper ‘relationship’. I want somebody who will save me from
masturbation. C’est tout» (p. 270). Impossível ser mais claro. Momentos
de autonomia e pura liberdade livram a existência de se transformar num inferno
completo, sendo especialmente alegres e cintilantes os dias passados na
companhia de Gunvor. Mais uma
vez, a incerteza persiste: «My feelings for her are totally natural. I feel
myself connected to her spiritually and mentally. There’s not the slightest hint
of a physical desire. But it may be true that I have a need to love and to
express this. Gunvor is a most welcome target for this love» (p. 315). As
crises que irão pautar a relação enchem as páginas do diário de sonhos e
subsequentes análises. Mas o que de mais precioso nos oferecem estas páginas é
a perspectiva de uma mulher a quem tudo foi roubado, lançada na mais terrível
das solidões, rodeada de ameaças à sua própria existência física, assim como à
sua saúde mental, em busca de uma única coisa: uma vida normal, uma casa, um
trabalho, alguém a quem amar. Helplessness é palavra que ressoa no final. O
desamparo, tanto na vida real como nos sonhos, talvez seja o que de mais
tocante este exemplo tem para oferecer ao mundo, o mesmo desamparo que fica
subentendido num breve poema em prosa datado de Julho de 1942:
NADA EXISTE
Nada existe a salvo do vazio que treme no meu peito. Ó,
as magníficas palavras que me dedicaste, o que é feito delas? A janela que além
enfrenta o Verão brilhante, as nuvens inflamadas que se espalham sobre a coroa
dourada de uma árvore trémula; senão isto, então que devo eu desejar? Que outra
coisa mais alguma vez desejei? E no entanto, ó omnisciente, este vazio — de
onde veio ele senão deste Verão a brilhar de dores indizíveis?
P.S.: um complemento precioso, vindo de quem me fez chegar este magnífico testemunho: aqui.
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