terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

SEGUNDO PLANO


Tudo em segundo plano,
pudesse ficar
um poema no adro como
se alguém varresse as folhas
para um canto
e o vento voltasse a soprar
e dispusesse tudo da mesma forma,
o orgânico e o inorgânico,
inertes, imateriais,
visíveis e invisíveis,
coisas reais, imaginadas,
a dupla fieira de cedros e pessoas
que aguardam à porta pela saída
e despejam sacos de arroz, denso
como depósito no fundo de garrafas.

De longe assistem a tudo,
ansiando por maior folga para os pés,
defendendo o traje e a recordação.
Ainda não voam os papéis do registo
até aos ladrilhos das casas de banho
que cheiram a suor e a urina.
Pudessem ficar em segundo plano.
Estivessem no âmago do acontecimento,
onde a luz do sol bate na pedra
e devora a construção,
mas ao mesmo tempo vagueassem
pelas redondezas, laterais,
como se as sombras fossem independentes
das opacas matérias que lhes correspondem.

Alguém surge para anunciar
mais um pequeno atraso,
previsto desde sempre, e todos dissociam
arroz na mão, arroz lançado,
o tempo que há-de vir oscila na memória
e dá razão aos distraídos e aos retardatários.

Pudesse ficar tudo por dentro
de uma imagem, alheio, em segundo plano.
Se eu desse os parabéns correctamente
poderia por trás aplaudir, incentivar,
ou teria espaço para uns insultos
caso a pequena actuação corresse mal. 

As coisas ficam em segundo plano,
atrás duma cortina, paradas.
A água não fractura o rosto
do rapaz retorcido por um mal congénito.
A cotovia não se atravessa entre nós e o céu
e quem se mantiver atento vê o céu
através das asas e do movimento,
pois a gravidade perde primazia e força de lei.
Vence quem dispuser do melhor exemplo. 

Não vou eu, em segundo plano,
cumprimentar o tio desengomado
que se protege do sol
e troca os nomes como um vulgar poeta.

E quando me abeiro da mão mole,
multiplicada pela distância, o eco
das vozes torna mesmo difícil saber
a que pergunta é devida resposta.
Quando afasto insectos
e a presença que nos ameaça
se torna por fim refém da transparência,
livre do comando de voz mais obscura
que não sou capaz de repelir,
fecho os olhos, inteiramente
em segundo plano, e deixo-me cair
na voragem que adultera
o tempo e as fotografias.

Nunca sentiste, ao pegares num cinzeiro,
que repetes um gesto? E quando o levantas,
espreitando para dentro dos teus pulmões
fumadores, vês as coisas de facto
como dizes que são? Deixaste há muito de ser
moderno, demasiadamente moderno,
e desenrolas o papel higiénico das ficções
com absoluto terror do deserto?

Desdobras imagens tecidas por luminosos fios,
unidos àquela consciência que dissolve
numa treva os convidados
quando se debruçam para o bolo de noiva
ou escolhem carnes frias
ou provam os doces em segmentos.
Deixaste que a vida te enganasse?

Pudesse ter dimensão, dignidade
de exemplo e caber na moldura
que alguém arrasta atrás,
um semelhante, um igual.
Em segundo plano. Juntam-se
automóveis, pessoas vão saindo,
iminente a chegada da noiva -
o tempo não defrauda as expectativas.

O Convento de Cristo sobrepõe-se à pedra
amontoada. Confirma-se um rosto.
Já os Templários descem a cavalo
quando alguém fecha uma janela.

José Ricardo Nunes (n. 1964), in Apócrifo (2007). Autor de algumas narrativas curtas (Alfabeto Adiado, Confissões) e ensaísta com obra publicada no domínio da crítica de poesia, José Ricardo Nunes é um poeta onde a contenção discursiva surge primeiramente como marca de uma dialéctica entre a experiência do real e a vontade de superar essa experiência com incisões imagéticas invulgares. Contaminados pelo quotidiano e por memórias diversas, os seus poemas raramente se circunscrevem às circunstâncias que os motivam. Evoluem quase invariavelmente no sentido de um mundo onde a linguagem está consciente da sua infidelidade ao real. Deste modo, a sua poesia está intimamente ligada ao corpo. Mas está ligada ao corpo na medida em que é neste que os dados da experiência são filtrados pela linguagem, a qual nos transporta amiúde para situações onde da treva, da dor, da perda, da monotonia, surde uma emotividade que já não é meramente cerebral e literária. É a emotividade que reclama para o poema o estatuto de coisa orgânica, coisa essa que sabemos jamais poder ser um poema embora desse horizonte não pretenda o poeta perder a vista.

Sem comentários: