De regresso aos westerns, reparo quão injusta é a
ausência de Cecil B. DeMille (1881-1959) nesta lista. Apesar de ter ficado na
história do cinema pelas recriações bíblicas, DeMille foi desde o início da sua
carreira devoto do mais antigo dos géneros cinematográficos. Ainda no tempo do
mudo, o primeiro dos seus filmes creditados é um western: The Squaw Man/O
Exilado (1914). O mesmo filme será readaptado em 1918 e 1931. Mas a obra-prima do
autor de The Ten Commandments no género é The Plainsman/Uma Aventura de Buffalo
Bill (1936). O título português não faz justiça à verdadeira estrela da
companhia, a lenda Wild Bill Hickok (homem livre das vastas planícies
selvagens, conhecedor dos dialectos índios e dos seus costumes). De seu
verdadeiro nome James Butler Hickok (1837-1876), Wild Bill ficou conhecido não
apenas pela longa cabeleira, imagem de marca que o aspecto limpo de Gary Cooper
está longe de honrar, mas pela pontaria afinada ao serviço da União. Foi amigo
de William Cody, conhecido por Buffalo Bill, interpretado por James Ellison
neste filme, e amante de Calamity Jane, famosa batedora que fez frente aos
índios em diversas ocasiões. Jean Arthur é uma Calamity Jane muito mais elegante e
feminina, assim como muito menos calamitosa do que as fotografias da época permitem supor. Como
não podia deixar de ser, estas lendas do Velho Oeste aparecem no cinema
expurgadas de quaisquer rugosidades humanas. São os conquistadores do Oeste
Selvagem, líderes de uma missão incutida por Abraham Lincoln após a Guerra
Civil e antes de ser assassinado. Também o malogrado General Custer surge
representado pelo actor John Miljan.
Lincoln, Custer, Wild Bill Hickok, Buffalo Bill e Calamity Jane compõem a cartada desta aposta onde se joga a conquista do
Oeste, então perturbada e dificultada pela guerrilha dos índios que se opunham
às leis brancas e ao progresso que deixava atrás de si o rastro sangrento do
extermínio de búfalos (a alcunha de William Cody não é fruto do acaso) e a
destruição da natureza. Portanto, também aqui estamos entre figuras bíblicas.
Neste caso, os protagonistas do desenvolvimento de uma nação tal como hoje a
conhecemos. A diferença está em que destes protagonistas temos a certeza de uma
existência factual, deles chegam-nos fotografias e relatos mais ou menos
credíveis. Sobre eles se construíram histórias e ficções, pese a
dimensão mitológica a que nenhuma historiografia popular está imune. Cecil B. DeMille não lhes retira essa aura, antes a reforça exaltando o heroísmo das acções levadas a cabo, a justeza
das decisões, a coragem e o sacrifício em nome de valores que eram os da figura
tutelar de Lincoln. DeMille embeleza os seus heróis, obedecendo aos códigos
cinematográficos de uma indústria em ascensão. O filme acrescenta, porém, às
aventuras e desventuras das figuras retratadas uma raríssima, à época e ainda
hoje, menção ao poder pantanoso do negócio de armas. Desviando-se dos factos
negros da História, o realizador não deixa de aludi-los. A cena em que os
industriais de armamento debatem o que fazer com as armas que o fim da Guerra
tornou inúteis, optando por vendê-las ilegalmente às nações índias, pode não
ser fiel aos factos, mas é hoje de uma irónica pertinência. No fundo, por
detrás dos grandes gestos destes heróis medra a inconspícua indústria do
armamento. Com os seus ardis, artimanhas e total ausência de escrúpulos, o
negócio é uma espécie de agente duplo ao serviço da sua egoísta
prosperidade. Não importa quem detenha as armas, conquanto sejam apetecidas e
pagas. Em 1937, tais questões não colocavam a quem visse o filme de
Cecil B. DeMille. Talvez as pessoas estivessem mais interessadas em alimentar
os mitos nacionais que engrandeciam a América face a uma Europa em erupção.
Hoje o pormenor não pode escapar, até porque a verdadeira aventura de Buffalo
Bill já não é caçar búfalos, matar índios ou capturar o seu amigo Wild Bill
Hickok. A aventura é perceber porque estão impedidas as pessoas de viver
sossegadamente num mundo pacífico, um mundo que deixe de ser a mesa de jogo
onde a batota custa vidas humanas e enriquece quem não sabe disparar senão
pelas costas.
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