domingo, 8 de fevereiro de 2015

VOO RASANTE

 


LIVRARIA
 
Canta o galo em óbvia agonia,
a novidade não chegou, o menino desnasceu,
culpa do transportador atrasado
e do segurança mental,
cada qual com suas razões
que a razão desconhece.
 
Levanta-se logo cansado, o livreiro,
carrega caixas eufemisticamente
designadas de volumes.
Desloca o sacro, mói-se de fadiga
e roga pragas à Autoridade para as Condições do Trabalho,
tão escrupulosa com a ponta das tesouras
e indiferente às pontadas no peito.
 
Abre-te Sésamo pelas dez,
com a freguesia ávida da novidade em falta
e o livreiro ressumando ansiedade
no parco fundo de caixa.
É preciso repor stocks, refazer tops,
controlar a iluminação da caverna
onde o tesouro foi substituído por quarenta ladrões
e um Ali Babá sem história para contar.
 
Canções de Natal martelam
a atmosfera,
sente-se no olhar cifrado do transeunte a falta,
a carência, o desespero,
a inclinação para esbarrar no protesto
por qualquer nuvem de poeira que se levante
entre a secção da auto-ajuda e a subsinalética
do esoterismo financeiro.
 
Partilham destaques a crise, as mensagens cindas do céu,
milfs arrebatadas por algemas,
apresentadores de telejornal,
culinária rápida e económica, etc.,
recolhendo num canto sombrio o clássico obsoleto,
a poesia esquizofrénica
o tudo o mais que interesse a quem não tenha
jeito para o mundo.
 
Por vezes saltam da gaveta
perguntas surpreendentes, dúvidas, solicitações,
como a título de exemplo
livros ao preço da chuva, com cheiro,
que resistam ao fogo. Nada que nos distraia
da factura mal emitida, do ficheiro por preencher,
dos stocks, do marketing, das conversões, das tabelas,
da portaria com o ressaibo de quem desgoverna
sem olhar a outra coisa que não seja
lucro, cliente mistério, venda acrescentada.
 
Podíamos ficar horas, dias, meses, anos
a matutar causas e consequências para tamanha
desumanização.
Mas valerá a pena piar quando nos faltam asas
para voar daqui para fora?
Busca-se alegria, talvez, nos olhos satisfeitos da leitora,
musa mais que bastante para a míngua
de poesia; no dia afável que nos surpreende pela manhã,
quando ainda antes de aportarmos
um bando de gaivotas traz para terra
a tempestade longínqua
 
lembrando-nos por breves segundos
onde fomos buscar florestas inteiras,
ilhas, serras, atalhos de terra batida
com sementes desabrochando sombras
onde deitámos a saturação à espera
de melhores dias. Desses que sempre vêm
quando menos se esperam.
 
*
 
O DESPREZO DE IRENE
 
Se Irene soubesse
o quanto eu gostaria de ser bombeiro
para atacar seu fogo posto
com contrafogo
não deslizaria no varão como o refrigerante na palhinha
Simplesmente chamaria para seu colo
com o dedo indicador em anzol animado
todas as minhas paixões repisadas
E eu responderia ao chamamento estremunhadamente
com alma e medo e timidez arrancados à unha
lá do fundo da mentira onde caibo todo eu
 
Mas Irene não sabe nem pode saber do desejo
que verte águas no meu fogo
Passo os dias colado aos livros
o mais que descanso nas horas vagas
é indemnizado pela prática do surf nas páginas dos jornais
entre a bica e o chafariz que invariavelmente aparece
no miolo da poesia
Não me faço distraído nem desinteressado
simplesmente ando atreito nas esquinas da vida
 
De mim não falo porque desisti
sonho porém com talheres em remoinho
e longas vistas no pragal das sinfonias
disparatadas nos quartéis quando há fumo branco
Quero dizer: estou sozinho
desabituado de amar pela rama
não tenho conversa nem bíceps tonificados
desimportei-me de mim
 
Se Irene me lançasse um aviso sonoro
porventura me disporia a fazer de farol no seu drama privado
estudaria o texto com afinco
penduraria nos olhos com pregos inteligentes
todas as deixas expectáveis
 
Estou disponível para dar ao mundo a esmola de um engano
mas não me disponho a traições às quatro rodas
em viagem de trabalho
 
Sou homem, que porra, para varrer
das solas dos tapetes o lixo acumulado durante anos
tenha tempo e feeling
- tudo o que me exige o desprezo de Irene
 
 
Henrique Manuel Bento Fialho, in “Voo Rasante – Antologia de Poesia Contemporânea”, coordenação de Helena Vieira, Mariposa Azual, Fevereiro de 2015, pp. 53-56.
 
Poemas de A. Dasilva O., António Albata, Amadeu Baptista, Andreia C. Faria, António Cabrita, António Poppe, António Quadros Ferro, Carlos Leite, Catarina Barros, Catarina Nunes de Almeida, Cláudia R. Sampaio, Daniel Jonas, Diana V. Almeida, Elisabete Marques, Érica Zingano, Fernando Guerreiro, Filipa Leal, Frederico Pedreira, Henrique Manuel Bento Fialho, Hugo Milhanas Machado, Inês Dias, Inês Fonseca Santos, Inês Lourenço, Ismar Tirelli Neto, Jaime Rocha, João Bosco da Silva, João Paulo Esteves da Silva, Joiana Koehler, José Luís costa, José Mário Silva, José Miguel Silva, Júlia de Carvalho Hansen, Leonardo Gandolfi, Luís Maffei, Manuel A. Domingos, Manuel Margarido, Margarida Ferra, Margarida Vale de Gato, Maria Sousa, Marília Garcia, Marta Bernardes, Marta Navarro, Matilde Campilho, Miguel Cardoso, Miguel Castro Caldas, Miguel-Manso, Nuno Moura, Patrícia Baltazar, Pedro Eiras, Pedro S. Martins, Raquel Nobre Guerra, Regina Guimarães, Ricardo Domeneck, Ricardo Gil Soeiro, Ricardo Marques, Rosa Alice Branco, Rosa Oliveira, Rosalina Marshall, Rui Almeida, Rui Costa, Rui Pires Cabral, Rute Castro, Sónia Baptista, Susana Araújo, Tatiana Bessa, Tatiana Faia, Tiago Gomes, Valério Romão, Vasco Macedo.

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