quinta-feira, 19 de março de 2015

A MELHOR E A PIOR GARANTIA

Há efemérides que não fazem sentido algum, o dia do pai é uma delas. Isto porque o pai não é em si mesmo um valor absoluto. Em dias destes, como no dia da mãe ou no dia dos namorados, entre outros dias com objectivos meramente comerciais, penso nas pessoas abandonadas pelos pais, naquelas que aguentaram pais violentos, nos pais que mataram as suas mulheres e deixaram os filhos para contar a história. Penso também no Édipo Rei de Sófocles e na leitura freudiana da tragédia, simplificada por Jim Morrison nos versos de The End: «Father? / Yes, son? / I want to kill you. / Mother, I want to…» O que sentirão os tristes solitários que nunca tiveram namorado ou namorada no dia dos namorados? O que sentirão os filhos sem pai? O que lhes passará pela cabeça? A maioria das pessoas simplesmente passa por cima disto como passa por cima de tudo o que fira e magoe, mas a realidade é esta: ser pai não é, em si mesmo, um valor absoluto. É um valor relativo que nenhuma fotografia de momentos afectuosos consagra. Penso em René Crevel (n. 1900 – m. 1935), que aos catorze anos de idade foi obrigado pela mãe a ver o pai enforcado. Sei de pessoas cujos pais se mataram ou se deixaram morrer lentamente, vítimas de doenças terminais como, por exemplo, depressões profundas. Sim, depressões profundas. Deixem-me por um dia chamar-lhes doenças terminais, mortes lentas e dolorosas, doenças prolongadas com seus mártires torturados. O próprio Crevel foi uma dessas pessoas, acabou por se suicidar, a 18 de Junho de 1935, «fechando a porta, fechando a janela e abrindo a torneira do gás. Ao forro do casaco prendeu o bilhete destinado a marca derradeira do seu negro humor: Nojo, pede-se o favor de incinerar» (Aníbal Fernandes). A imagem pode ser violenta, mas a vida não o é menos. Não o deixei de fora dos meus suicidas por esquecimento, mas porque ele quis fica só. E ficando só torna-se uma das presenças mais fortes. Cito-o hoje, no dia do pai:

   Por causa de um suicídio a que me foi dado assistir, com um autor-actor que então era o ser mais querido e que mais me acudia ao coração, desse suicídio que mais fez —  à minha formação e à minha deformação — do que qualquer outra tentativa posterior de amor ou ódio, senti desde o fim da minha infância que o homem facilitador da sua própria morte é o instrumento de uma força maiúscula (chamai-lhe Deus ou Natureza), que ao pôr-nos no meio das mediocridades terrestres arrasta na sua trajectória, e para mais longe do que este globo de expectativa, os únicos corajosos que nele existem.
   Suicidamo-nos por amor, por medo, por causa da sífilis, ao que se diz. Não é verdade. Toda a gente ama ou julga amar, toda a gente tem medo, toda a gente é mais ou menos sifilítica.
   Mas por que não posso, na verdade, ver no suicídio um meio de selecção?
   Só se suicidam os que não têm a quase universal cobardia de lutar contra esta já referida e tão intensa sensação de alma que até nova ordem seremos obrigados a tomar por uma sensação de verdade.
   Não é verosímil que nenhum amor, nenhum ódio sejam justos nem definitivos. No entanto, apesar de eu ter tido uma educação moral e religiosa despótica, a estima que muito contra vontade minha sou forçado a manter por qualquer pessoa  que não tenha sentido medo nem limitado o seu impulso, o impulso mortal, leva-me todos os dias a invejar ainda mais os que sentiram uma angústia forte, ao ponto de não poderem continuar a aceitar os divertimentos episódicos.
   Os êxitos humanos são moeda falsa, pura fancaria. Se a felicidade terrestre nos permite ter paciência, fá-lo negativamente, à maneira de um soporífero. A vida que aceito é o mais terrível argumento contra mim próprio. A morte que várias vezes me tentou ultrapassava em beleza esse medo de morrer, na sua essência uma gíria, e ao qual poderia também chamar tímido hábito.
   Eu quis abrir a porta e não me atrevi a fazê-lo. Não tive razão, sinto-o, acredito-o, quero senti-lo, acreditá-lo; mas porque não encontrei nenhuma solução na vida, apesar do meu esforço a procurá-la, teria força para fazer algumas tentativas se não vislumbrasse no gesto definitivo, último, a solução?
   Aliás, a obsessão do suicídio permanecerá em mim, sem dúvida, como a melhor e a pior garantia contra o suicídio.



René Crevel, in O Meu Corpo e Eu, tradução e apresentação de Aníbal Fernandes, Sistema Solar, Outubro de 2014, pp. 79-80.

4 comentários:

Anónimo disse...

E assim matas todos os pais.

manuel a. domingos disse...

eu penso em todos esses exemplos. mas penso também no meu pai e na falta que ele um dia me fará, ou que eu lhe farei (pois, como dizes, tudo isto é relativo).

bea disse...

Claro que o amor dos pais é relativo. Tudo é, em certa medida relativo ao homem que vive os sentimentos ou as emoções na sua condição específica. E é certo haver pais assim e assado. Mas, dada a relatividade que afirma e até existe, então, se ela manda, nada vale a pena. Nada de bom. Mas acontece que existem pais assim assim e filhos assim assim em grande número. Que se acompanham uns aos outros cumprindo papeis não para cumpri-los mas por bem querer e estima. Haver um dia deles - ainda que não seja demasiado ligada a ele - não me choca.

panaceia disse...

Muito obrigada, Henrique, pelo texto.
Também não gostos dos dias "especiais" para isto ou para aqui, seja lá o que for. E também penso no meu pai, (tão doente) e na falta que ele me fará... ou como diz o Manuel Domingos, que eu lhe farei.
Abraço