segunda-feira, 2 de março de 2015

ADEUS


Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.


Eugénio de Andrade (n. 1923 - m. 2005), in Os Amantes Sem Dinheiro (1950). «Na linha dos homens da geração castelhana de 27, particularmente de Cernuda, cujo transbordamento metafórico diligentemente evitou; fugido aos maneirismos vanguardistas que atingiram os escritores portugueses europeus do nosso pós-guerra; empenhado numa densidade ideológica nunca imediata e, por isso, mais vasta do que essa com que dos neo-realistas, salvo Soeiro Pereira Gomes, quiseram impor-nos por espelho a anti-ordem de Santa Comba antes de se tornarem rentáveis mercenários do ideológico - Eugénio de Andrade confirma a nossa poesia nesse espaço absurdo de se ruma das de alto significado do mundo contemporâneo e por ele quase completamente desconhecido. (...) A sua poesia foi excessivamente referida como solar. A ênfase das leituras que tentaram abordá-la na qualidade despojada (e contudo artificiosa) da sua linguagem levou a insistir-se no seu desejo de luminosidade como conseguimento de plenitude. Esqueceu-se, desse modo, quanto essa claridade era, por vezes, mais desejo que conseguimento. Quanto a plenitude do corpo era aí cantada como desafio à real repressão sobre o corpo. Quanto a luz era um ofício de busca no centro de uma labiríntica realidade de trevas. O equilíbrio irrompe como demanda, a plenitude cresce como peregrinação vinda dos abismos, o azul dos seus versos é da mesma cor do cianeto (a cor mais terrível do azul)» (Joaquim Manuel Magalhães, in Os Dois Crepúsculos).

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