quarta-feira, 25 de março de 2015

(ramificações autobiográficas)

   Ao princípio era uma ilha. Em seguida o conhecimento de tudo: infância e adolescência. Depois venho por sobre as águas, caminhando em cima das águas sem me afundar. Chego a Lisboa. Portugal é um mapa: vou daqui para ali; não gosto. E a Espanha, a França, a Bélgica, a Holanda. E a Inglaterra? Dizem que sim, que Londres. Ora, ora. Vai-se ver e a Europa já não está. Na Espanha, oh não. Na França a mitologia literária fica para além das revelações. A Bélgica cheira a batatas fritas. (No entanto é bom chegar num comboio a Antuérpia, e depois haver muito frio, e se calhar tramarem-se coisas no nevoeiro. Não se sabe.) A Holanda é uma monarquia com vacas devagar para cá e para lá. De repente não se tem nada a ver com aquilo. Acabou-se. E a América do Sul? Lá iremos. É porque pode acontecer que um lugar qualquer esteja à espera. Não se deve deixar que o lugar envelheça. Muito bem.
   Ora, em Paris, tive uma visão. Uma coisa formidável. Não estava bêbado nem drogado. Um bocado de solidão apenas. Uma visão prometida desde sempre. Subitamente desabrocha: é o sinal de que um ciclo se completou. Então a gente desta a escrever desaforadamente, publica livros. Um dia uma pessoa está num quarto, deitada de costas, olhando para o tecto, respirando pausadamente. Pensa: como será neste momento a minha cara? Sabe-se — e com que abalo! — que tem uma expressão de pânico. Envelhecemos ali, olhando para a cal do tecto. Lá para trás as páginas escritas apodreceram. A vida que se foi desenvolvendo em torno de um obscuro crime (ter conseguido não morrer muito depressa? e ter por isso recorrido ao jogo concêntrico das palavras?), a vida, essa vida que não dava paz, pelo próprio tremor desavindo da maravilha anunciada, sim, essa vida aglomerou-se em torno da festa essencial do crime, e as pequenas festas criminais desencadearam a forma em movimento, o filme vocabular.
   Vamos amar a vida activa?, pergunto eu então. Sim, vamos entrar num barco que chegue de noite aos portos. Teremos horas e horas destinadas à preparação interior, ao apuramento das nossas melhores virtudes. Procuraremos nem sequer respirar. Vai ser bom. De manhã haverá a revelação de cidades que a luz equilibra ao alto. O lugar da acção. Vamos fazer coisas — coisas definitivas. Escrever, acabou-se. Agora, isto: mergulhar até ao fundo. Porque ficou assente: a literatura não é um facto, um acto a sério.
   Pois o que acontece é a população, com uma quantidade de ruas e casas. Estou à espera dos milagres. Experimento ir ao encontro deles pelas ruas fora. Também experimento sentado. Há uma conversa com um tipo: ele diz que pendurou alguém de cabeça para baixo. Haverá também quem diga ter sido posto nessa posição e ter visto o mudo assim. Relativamente interessante. Pode ser que os anjos falem desta maneira, que se trate de um tema angélico. Conversa puxa conversa, e uma mulher elege a inocência, o dono de um bar informa como é a sabedoria. Aparece também o famoso esquizofrénico: eu tenho as pernas verdes. Mas a morte está no meio de tudo isto. E afinal respiramos, envelhecemos na cara, o crime não deu nada.
   Sim, senhores: as pessoas pedem para eu ser mais claro. Como? O que espero é ver a metáfora apocalíptica ganhar um sentido literal. Entretanto desejam que eu conte anedotas. Decerto: vi uma vez um rapaz esfaquear outro. A multidão estava hipnotizada à volta; ninguém se mexia. Então o assassino disse: comigo é assim. Lá se vai a fascinação. Toda a gente salta para cima dele. Chama-se a polícia. Etc. É uma história. Gostam de histórias. E o sentido disto? Em mim é que ele está. Mas quem me pede significações? Não, não querem metáforas. Ponho-me a falar da beleza mortal dos espectáculos, de certos momentos extremos que regeneram a própria existência desde a origem. É uma coisa minha. Fala-se para estar só, ser contra os outros, limitar a invasão do mundo  — dessas ruas e casas, dessa população de funcionários angélicos. Não me venham com inocências nem sabedorias.
   Uma vez um rapaz disse-me: tenho aqui a fotografia do meu pai; está na Legião Estrangeira. Mostrou-me. Pobre rapaz devotado ao culto! Nunca seria um herói. Já nem há Legiões Estrangeiras para colocar um pai. É o desemprego por toda a parte. Percebem? A nota autobiográfica é: desempregado por dentro e por fora como um pai ou como um filho. O mundo não está para futuros.
   Quanto ao comércio e à indústria, enfim: faz-se um objecto, é bonito, prático, oferece-se nos aniversários; vende-se para isso. E o mundo lá vai, chega cada vez mais longe. Ganhamos espaço para o vazio; gostamos muito da nossa morte; trabalhamos esplendidamente por conta dela. Vai haver uma festa com discursos, ramificações. Também isto é um tema angélico. E o pior é que tudo, espalhado por fora, se liga coerentemente por dentro: a minha, a nossa morte. Trata-se de uma anedota, claro, e de uma metáfora com sentidos muito precisos. A ilha, sim, essa era uma fábula cuja moralidade ignoro. Só havia água à volta, mais nada.


Herberto Helder, in Photomaton & Vox, 3.ª edição, Assírio & Alvim, Outubro de 1995, pp. 24-28.

3 comentários:

manuel a. domingos disse...

este é o "meu" Herberto

hmbf disse...

sim, é um escritor diferente daquele que a crítica consagra repetindo exaustivamente as leituras de António Ramos Rosa e Joaquim Manuel Magalhães. mas estes focaram-se, sobretudo, na poesia. e ainda que o texto mais conhecido do segundo seja a propósito de "photomaton & vox", pouco diz sobre o livro em si. os contos de "os passos em volta" e os textos de "photomaton", incluindo uma sequência de mais de 50 micronarrativas muito ignoradas e quase sempre esquecidas, são do melhor que herberto produziu. a poesia é vulcânica, ou seja, tem os seus momentos de adormecimento e as suas fases eruptivas, mas não se sobrepõe, como dizem, a outros poetas da língua portuguesa de um modo assim tão evidente. e se formos aos michaux, huidobro, artaud, cendrars, etc., a coisa ainda se torna mais desconcertante. também ao contrário do que dizem, eu acho que herberto foi muito do seu tempo, o tempo de um surrealismo tardio que se voltou para as origens, os mitos, as línguas mortas, o magma da poesia e soube construir algo apaixonante em língua portuguesa a partir daí.

bea disse...

era louco, mas um louco estiloso. E desigual.