quinta-feira, 26 de março de 2015

“SERÁ QUE AINDA É POSSÍVEL A POESIA NUM MUNDO COMPLETAMENTE SECULARIZADO?”

A questão colocada por António Guerreiro enferma de um equívoco muito comum, o da completa secularização do mundo. Torna-se ainda mais confrangedora no contexto em que aparece, ou seja, numa crónica incluída no destaque dedicado pelo jornal Público ao desaparecimento do poeta Herberto Helder. Se a separação institucional dos poderes religioso e político se tornou uma realidade, embora sempre discutível, no mundo ocidental, ela permanece latente noutras latitudes. Ainda há pouco discutíamos a influência do religioso em atentados abomináveis, sendo possível guardar desses debates uma ideia muito concreta que extravasa toda e qualquer presunção de inocência das religiões no que hoje se vai passando pelo “mundo completamente secularizado”: a relação das pessoas com o sagrado mantém-se viva, a ponto de ser determinante nas opções políticas que cada um faz. Só assim podemos compreender que jovens secularizados optem por aderir a movimentos com uma base de sedução religiosa fundamentalista. Mas se quisermos ser mais minuciosos nem precisamos dessas situações limite, basta atentarmo-nos ao modo como ainda hoje, e até em contextos sociais e políticos que julgaríamos imunes ao poder do religioso, as maiorias esclarecidas do processo de secularização se vergam aos ditames segregacionistas dos zeladores de Deus. Basta ler um indivíduo como João César das Neves para perceber que evoluímos zero nesse domínio. A secularização do mundo, ainda para mais completa, é um mito que exige uma certa vigilância racionalista, sob pena de nos perdermos nos labirintos do espanto sempre que Deus desce à terra para matar através de braços humanos. Afirmar que o sentimento religioso nada tem que ver com fanatismos de origens suposta e exclusivamente política e económica é uma ingénua manifestação de fé, sendo claro que neles nada há de sagrado mas há muito de religioso. A questão, associada à poesia de Herberto Helder, é tanto mais interessante quanto a poesia de Herberto armadilha permanentemente os territórios da interpretação. A crítica oficial colou-se demasiado a leituras que o tempo transformou em paradigmas, nomeadamente a do “poeta órfico” que António Ramos Rosa sublinhou em “Poesia, Liberdade Livre” (Morais Editora, 1962). Mas o que Ramos Rosa afirma nesse ensaio é diferente do que o tempo se encarregou de repetir exaustivamente sem sentido crítico e, por isso mesmo, acabou por desvirtuar. Ramos Rosa diz, e bem, que «os seus temas se transcendem para um só tema ou num só acto de transcensão para o originário, para esse ponto de extrema violência em que se anulam os contrários e onde a eternidade se revela no instante». Ora, isto nada tem que ver com uma putativa secularidade do mundo. Isto tem que ver com uma vivência do sagrado que Mircea Eliade clarificou no seu “Tratado de História das Religiões” ao concentrar-se no poder simbólico que emerge da relação primitiva entre o homem e o espaço natural, sendo essa relação universal e sem tempo. A poesia de Herberto, nas evocações circulares e cabalísticas desse simbolismo, é ela própria bastante secular, na medida em que nos envia para um tempo anterior ao das religiões propriamente ditas, o tempo dos mitos e das epifanias, o tempo das hierofanias cósmicas e elementares, o tempo do “Corpus Hermeticum” onde os tais contrários se anulam no encontro de uma vibração (ou ritmo, palavra fundamental na poesia de Herberto Helder) comum. Deste modo, quando distinguimos e opomos o sagrado (vida religiosa) ao profano (vida secular) devemos ter presente que fazendo essa viagem às origens é no preço das bilhas de gás que o autor de "A Morte Sem Mestre" dará por concluída a sua obra. Portanto, a questão não é se a poesia é possível num mundo completamente secularizado. Não só esse mundo não existe, como a questão que, parece-me, há-de continuar a gerar poetas é a da própria possibilidade da poesia no mundo. Herberto Helder tornou-a possível por não ter compreendido nela um repto, mas sim um rapto (cf. "Photomaton & Vox"), ou seja, um jogo de espelhos.


Nota: grato ao Público e aos seus jornalistas pelo destaque e, sobretudo, pela excelente capa de 25 de Março de 2015.

3 comentários:

Jorge Melícias disse...

Está bem colocada a coisa, Henrique. A questão é de facto essa que levantas.

Magda disse...

Realmente, que mal-entendidos! Fiquei incomodada quando li o mencionado artigo, com a sua questão "obrigatória", como o Henrique tão bem explica, muito distante do real centro da poesia de Herberto Helder, além de desconcertante na sua ingenuidade. Lamento que num momento de homenagem como este sobressaia esta distância à obra, e lamento também ver pelos jornais sempre os mesmos nomes. Na minha pequena opinião muitos dos seus post bem o mereciam mais, que artigos destes que vou lendo (aborrecida) por aí. Obrigada por isso :-)

Cuca, a Pirata disse...

Tem razão o Henrique. O mundo está longe de ser secularizado.
E ainda que assim não fosse, não seria a secularização ameaça séria à poesia. A única coisa que a pode ameaçar é a crescente falta de silêncio. É tudo demasiado ruidoso, hoje em dia.