A questão colocada por António Guerreiro enferma de um equívoco
muito comum, o da completa secularização do mundo. Torna-se ainda mais
confrangedora no contexto em que aparece, ou seja, numa crónica incluída no
destaque dedicado pelo jornal Público ao desaparecimento do poeta Herberto Helder.
Se a separação institucional dos poderes religioso e político se tornou uma
realidade, embora sempre discutível, no mundo ocidental, ela permanece latente
noutras latitudes. Ainda há pouco discutíamos a influência do religioso em
atentados abomináveis, sendo possível guardar desses debates uma ideia muito
concreta que extravasa toda e qualquer presunção de inocência das religiões no
que hoje se vai passando pelo “mundo completamente secularizado”: a relação das
pessoas com o sagrado mantém-se viva, a ponto de ser determinante nas opções
políticas que cada um faz. Só assim podemos compreender que jovens
secularizados optem por aderir a movimentos com uma base de sedução religiosa
fundamentalista. Mas se quisermos ser mais minuciosos nem precisamos dessas
situações limite, basta atentarmo-nos ao modo como ainda hoje, e até em
contextos sociais e políticos que julgaríamos imunes ao poder do religioso, as
maiorias esclarecidas do processo de secularização se vergam aos ditames
segregacionistas dos zeladores de Deus. Basta ler um indivíduo como João César
das Neves para perceber que evoluímos zero nesse domínio. A secularização do
mundo, ainda para mais completa, é um mito que exige uma certa vigilância
racionalista, sob pena de nos perdermos nos labirintos do espanto sempre que
Deus desce à terra para matar através de braços humanos. Afirmar que o
sentimento religioso nada tem que ver com fanatismos de origens suposta e exclusivamente
política e económica é uma ingénua manifestação de fé, sendo claro que neles
nada há de sagrado mas há muito de religioso. A questão, associada à poesia de
Herberto Helder, é tanto mais interessante quanto a poesia de Herberto
armadilha permanentemente os territórios da interpretação. A crítica oficial
colou-se demasiado a leituras que o tempo transformou em paradigmas,
nomeadamente a do “poeta órfico” que António Ramos Rosa sublinhou em “Poesia, Liberdade
Livre” (Morais Editora, 1962). Mas o que Ramos Rosa afirma nesse ensaio é
diferente do que o tempo se encarregou de repetir exaustivamente sem sentido crítico
e, por isso mesmo, acabou por desvirtuar. Ramos Rosa diz, e bem, que «os seus
temas se transcendem para um só tema ou num só acto de transcensão para o
originário, para esse ponto de extrema violência em que se anulam os contrários
e onde a eternidade se revela no instante». Ora, isto nada tem que ver com uma
putativa secularidade do mundo. Isto tem que ver com uma vivência do sagrado
que Mircea Eliade clarificou no seu “Tratado de História das Religiões” ao
concentrar-se no poder simbólico que emerge da relação primitiva entre o homem
e o espaço natural, sendo essa relação universal e sem tempo. A poesia de
Herberto, nas evocações circulares e cabalísticas desse simbolismo, é ela própria
bastante secular, na medida em que nos envia para um tempo anterior ao das
religiões propriamente ditas, o tempo dos mitos e das epifanias, o tempo das hierofanias
cósmicas e elementares, o tempo do “Corpus Hermeticum” onde os tais contrários
se anulam no encontro de uma vibração (ou ritmo, palavra fundamental na poesia
de Herberto Helder) comum. Deste modo, quando distinguimos e opomos o sagrado
(vida religiosa) ao profano (vida secular) devemos ter presente que fazendo
essa viagem às origens é no preço das bilhas de gás que o autor de "A Morte Sem Mestre" dará por concluída a sua obra. Portanto, a questão não é se a poesia é possível
num mundo completamente secularizado. Não só esse mundo não existe, como a
questão que, parece-me, há-de continuar a gerar poetas é a da própria
possibilidade da poesia no mundo. Herberto Helder tornou-a possível por não ter
compreendido nela um repto, mas sim um rapto (cf. "Photomaton & Vox"), ou
seja, um jogo de espelhos.
Nota: grato ao Público e aos seus jornalistas pelo
destaque e, sobretudo, pela excelente capa de 25 de Março de 2015.
3 comentários:
Está bem colocada a coisa, Henrique. A questão é de facto essa que levantas.
Realmente, que mal-entendidos! Fiquei incomodada quando li o mencionado artigo, com a sua questão "obrigatória", como o Henrique tão bem explica, muito distante do real centro da poesia de Herberto Helder, além de desconcertante na sua ingenuidade. Lamento que num momento de homenagem como este sobressaia esta distância à obra, e lamento também ver pelos jornais sempre os mesmos nomes. Na minha pequena opinião muitos dos seus post bem o mereciam mais, que artigos destes que vou lendo (aborrecida) por aí. Obrigada por isso :-)
Tem razão o Henrique. O mundo está longe de ser secularizado.
E ainda que assim não fosse, não seria a secularização ameaça séria à poesia. A única coisa que a pode ameaçar é a crescente falta de silêncio. É tudo demasiado ruidoso, hoje em dia.
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