Quando, em Novembro de 2003, foi publicado o n.º 1 da Telhados
de Vidro, um dos aspectos positivos a assinalar era a recuperação, por assim
dizer, da poesia de Fátima Maldonado (n. 1941) com um conjunto de cinco poemas
entretanto reunidos no volume Vida Extenuada (& etc, Maio de 2008). Entre
este e a reunião da obra poética da autora, revista e acrescentada, tinham
passado dez anos. Um dos inéditos então publicados em Cadeias de Transmissão
(frenesi, Dezembro de 1998), o penúltimo da obra reunida, parte integrante de
um conjunto intitulado O Rumo das Coisas, pode adquirir aos dias de hoje aquela
função que costumamos atribuir aos cartões de visita:
ANTILÍRICA
Desce-se a rua
na esperança de esquecer
o uivo da matilha,
a beleza que resta
acorre-nos às feridas
unguentos depõe
nas zonas infectadas.
Querelas vicentinas,
empregos, sordidez,
«razias» declaram-se,
encostam-se polés
à crispação dos nervos,
a sombra das notícias
atiça expedientes, afirma torniquetes.
Academia das Ciências,
o ferro transplanta
um resto de harmonia,
argolas e lanternas
à sombra de desbastes.
Lisboa das comendas
que reis de papelão
investem nos serventes
elanguesce nos ritmos
com correntes à mó
e vasa no olhar
vai moendo farelo.
Paroquial,
os punhos sob a véstea,
exime-se ao remorso
de ter desamparado
a terra de Timor.
Antes de mais, o título do poema reveste-se de um carácter
programático facilmente reconhecível desde o livro de estreia: Cidades
Indefesas (1980). Nesse livro, Joaquim Manuel Magalhães reconheceu «Uma
tentativa de organizar um discurso confessional, (desligado do lirismo
intimista), que não perca de fito a recusa de ser um mero ofício de
autenticidade: escolhe uma pose onde se busca tão só organizar uma verosímil
sinceridade» (Os Dois Crepúsculos – Sobre poesia portuguesa actual e outras crónicas,
A Regra do Jogo, 1981, p. 277). Mais do que os pressupostos de sinceridade e de
autenticidade, sempre discutíveis e dificilmente delineáveis, retenho a ideia
de um discurso confessional desligado do lirismo intimista.
De facto, nas três sequências de Cidades Indefesas
encontramos de imediato um antilirismo que tem na forma de cantar o ser amado
algo de insólito e violento. A referência irónica a Camões no primeiro poema não
está desprovida de uma intenção belicosa: «Passámos ao Camões / onde ao virar
da esquina / um moço atravessado / caíra de uma bala. / Tinha, quando sentiu /
um líquido a escorrer, / um buraco vermelho / da forma dos Lusíadas» (Cadeias
de Transmissão, p. 11). Este «buraco vermelho da forma dos Lusíadas» resume o
confronto com uma tradição que a poesia de Fátima Maldonado incita, franqueando
o tom de epopeias apologéticas com poemas incisivos onde tanto o passado histórico
como o presente surgem configurados de um modo extremamente crítico. Mas, mais
do que isso, remetem para um acto de terrorismo poético que terá por alvo a
figura do amado. Este deixará de ser cantado enquanto príncipe dos desejos
ardentes, mago de um erotismo envolto em sonho, prazer e ilusão, para ser
reduzido à figura de macho com tiques burgessos incapaz de compreender o corpo
feminino:
(…)
O gozo que me deu fumar o teu charuto
mandar-te para o ar no fumo que espalhei
sobre um frasco de mel
foi quase tão intenso como o que me circula
quando uma língua bífida, certeira no seu salto,
me desfere a picada no clítoris que negas
(…)
(Cadeias de Transmissão, p. 19).
E, alguns versos depois:
(…)
Que pena que me dá que não possas chegar
ao balcão da taberna
e se viesse um copo roxo de vinho tinto
como a túnica velha do Senhor dos Passos
do mármore lhe pegasses,
engolindo-o bebesses
a nata que se coalha num sexo de mulher
(…)
(Cadeias de Transmissão, p. 20)
Aquilo a que vulgarmente chamamos lírica amorosa encontra
nestes poemas um campo minado, sendo reduzidos a destroços os preconceitos
dessa mesma lírica (agora antilírica) com a narração de (des)encontros eróticos onde
o sexo visita uma espécie de morte lenta em cenário urbano, tingida de
«escombros da memória», «cultura em decadência» e «nascentes de ruínas». O amor
talvez não seja um equívoco, mas o erotismo que se lhe oferece em falsete com
poemas rendilhados, sobretudo numa tradição desequilibradamente masculina, é um
logro que a autora desconcerta.
Partindo ainda do poema supracitado, repare-se na forma como
o primeiro verso — «Desce-se a rua» — nos convoca para os espaços por excelência
destes versos. A rua é o cenário privilegiado de uma poética que os
organizadores da antologia Sião (Al Berto, Paulo da Costa Domingos, Rui Baião, frenesi,
Fevereiro de 1987) apresentaram nos termos seguintes: «A haver alguma espécie
de legitimidade na comparação de Fátima Maldonado a Cesário, ela seria um
luciferino ajuste de contas com este deus da urbe». Este ajuste de contas, a
que anteriormente chamei confronto com a tradição (não só literária), esbarra
amiúde em descrições de cenários arreigados à actualidade, presenciados e
experimentados num regime de observação directa, aos quais se acrescenta uma
leitura impiedosa da nossa história (os “alicerces” do livro Os Presságios,
1983). O cenário lisboeta — «Lisboa das comendas» — é, deste modo, uma
plataforma de onde se parte para uma digressão pelos lugares d'abandono. À desamparada
terra de Timor evocada no poema Antilírica podemos juntar as ilhas de Cabo Verde,
Goa, Macau, um certo mundo rural negligenciado por um progresso agressor que,
mais do que avançar, usurpa horizontes, inúmeras referências onde vislumbramos
personagens saídas de um universo ficcionado a par de factos históricos e seus
eminentes figurões.
Não obstante, entre a rua e o corpo físico de quem a
percorre há uma ligação directa que se evidencia a todo o momento. A dimensão
política destes poemas, acusada por Manuel de Freitas em recensão a Vida
Extenuada, exerce-se num campo de batalha que não tem por fim rebater
contrastes. Antes pelo contrário, resiste ao tom acusatório de um tempo desgastado
e saturado com a denúncia da perda impressa pela transformação (da rua e do
corpo). Isso mesmo encontraremos, de um modo muito evidente, nos Cinco Poemas
Anti-Cee do livro Selo Selvagem (1985), com a vila de Sagres transformada num berço de «obesas criaturas» em regime turístico ou no Fundo de Desemprego. O mesmo poderíamos dizer dos já
aludidos cinco poemas inicialmente aparecidos no n.º 1 da revista Telhados de
Vidro, onde «perdidas na casa / sobravam nas teias / aranhas rendidas / a
sonhos catárticos» (Vida Extenuada, p. 9).
Esta noção de miséria que pretexta uma poética
paradoxalmente riquíssima em termos lexicais (Joaquim Manuel Magalhães, em Rima
Pobre, Presença, 1999, sublinha «um matagal de palavras recuperadas aos mundos
submersos da língua»), desvia-se igualmente daquele tipo de enaltecimento da
cultura clássica que o legado romântico deixou e muitos dos nossos poetas
acolheram. Em sentido adverso, as incursões pelo universo mitológico desconstroem
heróis com perspectivas agudas de uma humana, demasiado humana, descompostura. O
envelhecimento retratado em Vida Extenuada mostra como o corpo é uma extensão
do cenário onde este opera a sua metamorfose. O erotismo desabrigado do livro
inicial descamba n’A velhice de Maria Stuart: «a teus pés a vil clemência / de
Isabel tua prima Isabel / tal como tu agora desdentada / tal como tu agora sem
cabelo / duas mulheres sem paz / o pus tão podre a lepra nunca gasta» (p. 12)… Ou,
como podemos ler na Antilírica, «encostam-se polés / à crispação dos nervos». Toda a poesia
de Fátima Maldonado está marcada, desde o início, por esta crispação, versos
torturados pela passagem do tempo e pelo que durante essa passagem os olhos
capturam e o corpo sofre.
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