quarta-feira, 6 de maio de 2015

RUMO

Questionam-me na caixa de comentários deste post sobre qual o rumo que me faz confusão. Podia tentar desenvolver um diagnóstico e articulá-lo com meia dúzia de ideias sobre o tema, mas prefiro inventariar alguns exemplos observados nos últimos dias:

1. ontem passei por São Martinho do Porto para beber um café. Sentei-me a ler um livro, sublinhando o que me interessava, registando alguns apontamentos num bloco para o efeito. Escrevia à mão. Escrever à mão é um gesto cada vez mais obsoleto. A caligrafia há-de transformar-se numa espécie em vias de extinção, perda sobre a qual é difícil prever consequências. Além de mim, estavam no café um grupo de pessoas à conversa e uma família de estrangeiros. Não pude deixar de reparar na família: o pai tinha um laptop sobre os joelhos, a mãe entretinha-se com o tablet sobre a mesa, o filho olhava enfadado para o monitor do seu portátil, aberto sobre a mesa, com as mãos fechadas contra as bochechas e auscultadores enfiados nos ouvidos. É um cenário cada vez mais frequente, famílias sentadas à mesa sem palavras para trocar. Outrora, as televisões preenchiam o espaço vazio. Ainda se partilhava um mesmo programa. Agora, a ideia de partilha esgota-se numa distribuição equitativa dos gadgets. Não teço juízos, limito-me a constatar factos. Mas deixo no ar uma questão: independentemente do que cada um dos elementos daquela família estava a fazer no seu reinado tecnológico privado, o que têm aqueles instrumentos para oferecer ao futuro que nos faltava no passado?

2. tenho um cunhado que é fervoroso adepto da disponibilidade que a Internet oferece. Só vê vantagens, a ponto de se ter tornado fastidioso discutir o que quer que seja com ele. Porquê? Porque havendo uma dúvida, a Internet responde. É como se a verdade absoluta dos factos estivesse no enquadramento que a informação on-line lhes oferece. Esqueçam a relatividade das perspectivas, a ambiguidade dos fenómenos, a dimensão paradoxal e ambivalente das leituras humanas. Tudo isso foi superado pela verdade dos factos, tal qual números numa página Excel. Como há muito me habituei às mentiras da realidade, discordo destas perspectivas unilaterais dos factos. Passo por cima do assunto. Sucede que há tempos discutíamos acerca das vantagens de descarregar livros disponibilizados gratuitamente em sítios diversos na maravilhosa e vasta biblioteca dos cibernautas. Como sou antiquado, e faço questão de continuar a sê-lo, não realizo esse tipo de downloads. Não gosto de ler no tablet, tenho os meus hábitos de leitor dos quais não prescindo. Aliás, o simples facto de não ter que carregar a bateria de um livro para poder lê-lo convence-me sobre as vantagens da velha tecnologia em papel. Seja como for, tudo isto é discutível. O que já não me parece tão discutível é essa ideia feita de que a Internet disponibiliza tudo. É falso. Tentem encontrar on-line muitos dos livros sobre os quais vou escrevendo e obterão um resultado decepcionante. Volto a deixar outra questão: ao contrário de alargar mundos, não estaremos a encolhê-los partindo do princípio de que o mundo cabe todo dentro da Internet?

3. nos últimos dois dias vi dois episódios da Violeta. Quis perceber o que vêem as minhas filhas na Violeta. Não consegui, mas sei o que vi. As personagens têm vozinhas irritantes, sobretudo as femininas, que parecem saídas de desenhos animados de mau gosto; não há ninguém que se comporte um pouco acima da imbecilidade; toda a gente se veste de um modo extremamente colorido e primaveril; o esforço e o trabalho, o espírito de sacrifício dos artistas, são ali substituídos por um facilitismo milagroso; não existe no argumento um mínimo vínculo à realidade, é tudo ilusão e fantasia; os adultos aparecem completamente infantilizados; é como se tudo caísse do céu sem intervenção divina. Enfim, não gostei da Violeta. Mas as minhas filhas gostam e eu quis perceber porquê. Faço o mesmo esforço quando observo a minha mulher a ver a Anatomia de Grey no tablet. Nada tenho contra a Anatomia de Grey (de resto, nunca vi sequer um episódio) nem contra a Violeta… Mas tenho alguma coisa contra os processos de estupidificação das massas.
 
3.1. A minha mulher descarrega imensos filmes da net. Diz que lhe dá jeito, para passar o tempo nas viagens entre Caldas e Lisboa. Em contrapartida, vamos cada vez menos ao cinema. Quando viemos morar para aqui, alugávamos filmes no clube de vídeo. Agora, raramente, alugamos no MEO. A selecção de filmes disponibilizados é francamente má e muito limitada ao blockbuster. Pastilhas elásticas gourmet. Ir ao cinema tornou-se um luxo. As boas salas, as salas onde podemos escapar à irritante mandibulação de pipocas, escasseiam e ficam distantes. Tenho pena, pois sou daqueles para quem ver um filme no grande ecrã não é o mesmo que o ver numa televisão ou no monitor de um computador. Recentemente, durante uma sessão do ciclo Rossellini senti arrepios na espinha que, mais do que pelo filme, foram provocados pela situação em si: os “movimentos no escuro” que nenhuma porra de nenhuma televisão oferece, seja a velha Jocel cá de casa ou o plasma de topo de gama. Há também a dimensão social. Nessa sessão do ciclo Rossellini, deu-se o acaso de ter encontrado no cinema um amigo que ia ver o mesmo filme. Foi agradável, até pela raridade, ficar breves minutos depois do filme a trocar impressões sobre o que tínhamos acabado de ver. E sem que nada o previsse, acabámos numa livraria que tinha aberto nas imediações do cinema. Uma última pergunta: estes acasos seriam possíveis se eu tivesse ficado em casa a ver o filme?
 
Dito isto, e muito mais haverá a dizer, permito-me concluir que julgo cada vez mais o teatro um espaço de resistência à tirania tecnológica. Até ver, ainda não conseguimos descarregar actores de nenhuma base de dados que nos ofereça o caos libertador dos acasos e da imprevisibilidade, esse lado contingencial da vida que lhe oferece um gosto e uma humanidade que as tecnologias vão usurpando com os seus programas e as suas programações infalíveis e exactos.

12 comentários:

Luis Eme disse...

o que é que posso dizer, quando partilho muitos dos teus pontos de vista?

talvez, viva o Teatro!

bea disse...

Por acaso concordo consigo em muitos pontos.
Também não troco a sala de cinema pelo écran da Tv ou do Pc ou tablet ou lá o que seja que nos permite ficar em casa (acontece é que, na maioria das vezes não tenho escolha:)). Concordo que a socialização, se acontece, é bem vinda.

Só uma questão: há quem veja muito mais e melhor cinema agora. Devido à net. Está certo, não estão lá todos os filmes que queremos, mas podemos encontrar alguns. E, para quem vive na província e não tem sequer uma sala de cinema, a net é um achado. Além do mais, há a importância (grande e a crescer) de sair muito mais barato.

Longe de mim pensar que a net resolve tudo. Pelo contrário, falta-lhe muita coisa mesmo. Mas resolve alguns problemas. E não me parece que a solução seja medir prós e contras, mas, com ela, acrescentar valor à vida que temos e é a nossa. Há que geri-la por forma a conseguir isso.

Hummm...tenho uns amigos que, quando os visito, às tantas dou por eles cada um com seu tablet e não sei muito bem o que faço ali no meio.

Coisas.

Cuca, a Pirata disse...

Eu gosto de gadgets. E também gosto de livros digitais e sobretudo da quantidade de tralha escrita em inglês que a net disponibiliza gratuitamente. Não teria conhecido o Wallace Stevens se não fosse a net (acho que só há dois livros editados em Português e um deles, pelo menos, não é fascinante), não teria acesso ao Rumi e isto só para referir as minhas duas últimas obsessões. Além disso, não teria como ler guiões de filmes, que é uma coisa que gosto de fazer não sei bem porquê. No entanto, continuo a comprar maioritariamente livros impressos porque gosto de os ter fisicamente.
Não creio que a internet potencie uma perspetiva única das coisas. Mais depressa essa perspetiva unitária resultaria da leitura, em exclusivo, da imprensa nacional.
O que penso é que a internet e os gadgets podem dar-nos o melhor dos dois mundos, se bem usados, e podem afastar-nos do mundo real se nos distrairmos.

Ivo disse...

Tal como previ - mas não o escrevi - o post fonte deste tinha muito mais matéria subjacente do que aquela que referi no comentário.
Reformulo o comentário que deixei no outro mas por alguma razão não foi publicado:

"As massas, as tais entretidas com o circo, sendo-lhes disponibilizada a bendita cultura, estarão dispostas a beneficiar, usar - e porque não, abusar - dela?"

Concordando com todos os pontos, de 1 a 3.1, há um facto inegável: exemplo clássico, Youtube. Tem tudo? Talvez não. Mas tem todo um mundo para ser descoberto - a questão é saber o que fazer com ele, ie, saber o que "picar". Um canal recente disponível por cabo, Canal 180, português, bastante interessante, exibia há uns dias um documentário, do qual apanhei apenas uns minutos - falava do efeito Youtube na China. E alguém dizia "estes miúdos, de há 10 anos para cá, têm acesso a Stravinsky ou a Psychedelic Furs (penso que era este o exemplo)". Não é isto uma vantagem, quando comparado por exemplo com a minha adolescência, em que para conhecer algo novo tinha de ir à discoteca? Perde-se o contacto humano? Certamente. Mas continuo a ir - agora não só para conhecer novidades mas também para comprar o que conheci via net.

Diogo Almeida disse...

«É um cenário cada vez mais frequente, famílias sentadas à mesa sem palavras para trocar.»

Na outra mão, julgamos sempre um «fenómeno» quem é muito fértil e produtivo com palavras, como os escritores férteis e produtivos.

Abaixo as 8 horas de trabalho.

Anónimo disse...

"Aliás, o simples facto de não ter que carregar a bateria de um livro para poder lê-lo convence-me sobre as vantagens da velha tecnologia em papel."
É verdade quanto à bateria. Mas para ter um livro tem de deitar abaixo (ou alguém por si) várias árvores. E, depois, até chegar ao papel há muito a fazer e mais complicado do que carregar uma bateria. Em geral o que parece não é.

Anónimo disse...

"estes acasos seriam possíveis se eu tivesse ficado em casa a ver o filme?" A resposta é não, seriam possíveis
outros.

Anónimo disse...

Há uma biblioteca que contém milhões de obras, desde livros de Paulo Coelho até os de Shakespeare. Há um jovem que passa lá horas e horas a folhear e ler livros. Quando a mãe, pai ou irmão aparecem ele, absorvido na leitura, praticamente não lhes dá atenção. Que comentar? Se ele fizesse exactamente o mesmo pela internet como seria o comentário? E se, para ter acesso à internet, utilizasse um telemóvel?
E lesse, lesse, etc. com auxílio de um telemóvel ou com um leitor de e-books? Que dizer? E se lesse por um livro tradicional feito de folhas de celulose?
Qual a diferença?

hmbf disse...

"para ter um livro tem de deitar abaixo (ou alguém por si) várias árvores"

Quer falar de lixo tecnológico?

"seriam possíveis "

Tipo falhar a luz?

"Qual a diferença?"

Não vê diferença? Os pais não estavam a ler, pá. Podiam dizer ao puto: acorda, vai para a rua brincar aos cowboys com os teus amigos. Faz amigos, puto. Joga à bola. Rebola na lama.

Anónimo disse...

Quando eu era miúda a minha mãe ralhava-me que eu via demasiada televisão, que eu devia ler os livros que tinha na estante do meu avô, e que devia bordar mais e aprender a fazer tricot porque era importante ter uma actividade manual para "educar" a cabeça. Eu à noite via toda a televisão que conseguia, o telejornal, as séries e os filmes à quarta-feira, e tinha pesadelos imaginando que por ver tanta televisão não teria "vida", como a minha mãe profetizava. Depois cresci e abandonei naturalmente a televisão em função da "vida". Hoje felizmente ou infelizmente posso dizer que não vejo televisão. Vejo notícias em jornais na net, leio blogs de opinião de gente que não tem vez para comentar no telejornal, leio livros que descarrego e outros que compro porque passei a conhecer muitos mais autores, vou ao teatro com amigos e só me queixo de não ter tempo, ou disposição, para ver filmes. Também sou mãe. Hoje ralho com os miúdos que passam demasiado tempo agarrados aos jogos electrónicos quando têm tantos brinquedos na prateleira, e por vezes chuto-os de casa para irem jogar à bola. Depois de eles saírem rio-me muito e penso na minha avó que dizia "casa que não é ralhada não é bem governada". E penso também nesse provérbio quando tu, Henrique, nos ralhas. Humanidade que não é ralhada, não é bem governada. Depois também me rio muito. Bjs. Sofia

MJLF disse...

O boom informático originou uma tirania tecnológica, de facto. E resistir a isso é difícil. Saúde e bjs para a tribo

margarete disse...

«"para ter um livro tem de deitar abaixo (ou alguém por si) várias árvores"

Quer falar de lixo tecnológico?»

ora, nem mais!