sábado, 13 de junho de 2015

DOMINGO


a Carlos Parreira

A distância entre mim e o que me circunda,
sempre a repercutir-se nos meus gestos,
aflige-me e dói-me.

Olho para aquela rua vagamente,
olho em volta de mim neste café longínquo,
e todas as coisas não significam coisa alguma
e toda a gente tem escrita no rosto
quanta traição da vida!

Ah, que não consigo ser fraterno e integrar-me
e ser despreocupado e ignorante
do meu, do nosso drama...

Bem quisera esquecer-me e enlear-me
nas coisas fúteis, ingenuamente vis,
que alimentam o destino desta gente.
Mas olho para mim e sinto-me diferente,
amachucado pela lucidez duma intuição
que todas as tentativas para imiscuir-me 
não conseguem mais do que exacerbar.

Consola-me a certeza de que tudo isto é fictício,
e não me custa a renúncia, em troca deste contemplar
calado, discreto mas tumultuoso...
Lá fora há agitação e há bulício.
Paira sobre as coisas a inutilidade,
o frágil, o efémero...

(Chego às vezes a pensar que tudo não seja mais que representação.)

Cansado do espectáculo,
abandono esta mesa de café
e vou passear ilusões impossíveis,
até que a noite venha e eu recolha
à solidão do meu quarto
— mãos vazias e coração intranquilo.


Luís Amaro (n. 1923), in Dádiva (1949). «Em traços gerais, digamos que a poética de Amaro se aproxima de alguns autores presencistas, num lirismo muitíssimo subjectivista e não especialmente modernista. Régio influenciou esse registo de confessionalismo umas vezes melancólico e outras quase agónico, mas encontramos também afinidades com a musicalidade minimalista de António Botto ou Saul Dias, com alguma ingenuidade humanista de Sebastião da Gama ou com o queixume musicalmente tecido de António Nobre. O vocabulário e o imaginário de Amaro é muito simples e reincidente: existe "a vida", quase sempre decepcionante e fugaz; a solidão, sofrida em segredo, embora um segredo anunciado em versos; a lassidão face à agitação e futilidade das multidões; a "alma", que é uma forma de ânsia, de vaga religiosidade, de rectidão ética; há a noite, que encerra todas as ilusões; há uma tristeza que às vezes é quase angústia adolescente; há um "caminho" difícil e contrariado nas suas intenções iniciais; há um "sonho", que é a vontade de um voo livre e sem horizontes; há uma aceitação estóica da vida toda, dos instantes todos; há uma camaradagem de acentos vagamente sociais; há uma esperança que nasce da inquietude; e há uma crença na poesia que tudo sustenta» (Pedro Mexia, in DN, 6.ª, 14 de Julho de 2006). 

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