I
Visto a camisa. Depois distingo
o dia, usando um alfinete
sob a lomba das unhas.
Caiu-me já o tecto. Medi-o
nas paredes:
as quatro profecias.
Pasto: achado alado o logro
nos flancos de um polícia.
Rodas: de carro de poeta
de puta.
Medidas preventivas
até que chegue a noite.
II
Nasce um pensamento na garganta
como um filho. Enrodilho
o filho o pensamento
e a garganta.
Sofremos todos de moscas nos artelhos
eu deixei de ir à missa há mais de um ano
não brinco com os novos e farto os velhos
sacrilégios domingueiros, abortos
deste clima americano.
Não devia haver mais hermetismo
uma boca deslocando o sonho pela mão
e de repente nascermos assim todos
sem baptismo.
É que há uma origem frustrando nosso enlace
repentino com a morte e uma morte dividindo
nosso serviço
absurdo de ir andando.
Andando Armando a rima zune
e o pensamento afasta prejuízos
e só sorrisos são
a morte natural do entendimento.
Armando Silva Carvalho (n. 1938), in Lírica Consumível (1965). «De duas revistas coimbrãs, A Poesia Livre, um número, 1962, e Poemas Livres, três números, 1962-63, saíram: Manuel Alegre (...) e Fernando Assis Pacheco (...). Bom testemunho de uma emotividade e combatividade revolucionária é, nos anos 60, a do malogrado Daniel Filipe (...). Mais desconcertante do que a maioria destas vozes revela-se a de Armando Silva Carvalho (...) no modo como utiliza a associação aleatória, verbal ou narrativa, e consegue captar certa atmosfera lisboeta actual, certas raízes rurais ainda portuguesas, para, sarcasticamente, reduzir a farsa várias maneiras e discursos de actualidade cultural ou, geralmente, nacional» (A. J. Saraiva, Óscar Lopes, in História da Literatura Portuguesa). «O que distingue Armando da Silva Carvalho [sic], e faz a inequívoca força e qualidade da sua poesia, é um vocabulário desconcertante, entre o requintado e o pedestre, entre o enternecido e o violento, rodando permanentemente sobre si próprio, o que não é apenas um trabalho de som e ritmo, mas a transcrição da voz do mundo com tudo aquilo que tem de acidentado e pedregoso» (Eduardo Prado Coelho, Público, 2 de Julho de 2005).
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