quarta-feira, 17 de junho de 2015

EJACULAÇÃO DE BOFETADAS

Na apresentação de O Meu Corpo e Eu (Sistema Solar, Outubro de 2014), de René Crevel, Aníbal Fernandes afirma que «A bofetada era recorrente no azedume dos surrealistas franceses, central no seu código dos gestos correctores. Poder-se-ia escrever todo um texto sobre as bofetadas surrealistas coleccionando motivos e ocasiões em que A esbofeteou B, e B esbofeteou C. (Uma, tardia porque do Surrealismo do pós-guerra e já distante do seu período mais interventor, deu-a Breton à escritora Rachilde.)». Já na apresentação de As Irmãs Brontë, Filhas do Vento (Assírio & Alvim, Abril de 2005), do mesmo autor, Aníbal Fernandes tinha referido que após ter desempenhado um papel numa peça teatral do dadaísta Tristan Tzara, Crevel foi esbofeteado pelo surrealista Paul Éluard. Henri Michaux, que não era surrealista, foi mais longe e idealizou

A METRALHADORA DE BOFETADAS

   Foi em família, como seria de esperar, que realizei a metralhadora de bofetadas. Realizei-a sem a ter premeditado. De repente, a minha cólera projectou-se para fora da minha mão, como uma luva de vento que tivesse saído dela, como duas, três, quatro, dez luvas, luvas de eflúvios que, espasmodicamente, e a uma velocidade incrível, se precipitaram das minhas extremidades manuais, lançando-se para o alvo, para a cabeça odiosa que atingiram sem demora.
   Aquele espasmo repetido da mão era espantoso. Já não era, em verdade, uma bofetada, nem duas. Tenho uma natureza reservada e só me exalto no precipício da raiva.
   Verdadeira ejaculação de bofetadas, ejaculação em cascata e aos sobressaltos, a minha mão permanecia rigorosamente imóvel.
   Nesse dia, toquei a magia.
   Um ser sensível teria visto ali qualquer coisa. Aquela espécie de sombra eléctrica brotando espasmodicamente da extremidade da minha mão, congregada e reformando-se num instante.
   Para ser completamente franco, a prima que me tinha irritado acabava de abrir a porta e de sair quando, apercebendo-me bruscamente da vergonha da ofensa, respondi ao retardador com um voo de bofetadas que se escaparam realmente da minha mão.
   Tinha descoberto a metralhadora de bofetadas, se assim o posso dizer, mas é o termo mais adequado.
   Depois nunca mais pude ver aquela pretensiosa sem que, da minha mão, as bofetadas se lançassem como vespas ao seu encontro.
   Esta descoberta compensou-me pelas odiosas palavras que me humilharam. É por isso que às vezes recomendo a tolerância no seio da família.



Henri Michaux, in Antologia, tradução de Margarida Vale de Gato, Relógio d’Água, Agosto de 1999, pp. 182-183. 

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