Na apresentação de O Meu Corpo e Eu (Sistema Solar, Outubro
de 2014), de René Crevel, Aníbal Fernandes afirma que «A bofetada era
recorrente no azedume dos surrealistas franceses, central no seu código dos
gestos correctores. Poder-se-ia escrever todo um texto sobre as bofetadas
surrealistas coleccionando motivos e ocasiões em que A esbofeteou B, e B
esbofeteou C. (Uma, tardia porque do Surrealismo do pós-guerra e já distante do
seu período mais interventor, deu-a Breton à escritora Rachilde.)». Já na
apresentação de As Irmãs Brontë, Filhas do Vento (Assírio & Alvim, Abril de
2005), do mesmo autor, Aníbal Fernandes tinha referido que após ter
desempenhado um papel numa peça teatral do dadaísta Tristan Tzara, Crevel foi
esbofeteado pelo surrealista Paul Éluard. Henri Michaux, que não era
surrealista, foi mais longe e idealizou
A METRALHADORA DE BOFETADAS
Foi em família,
como seria de esperar, que realizei a metralhadora de bofetadas. Realizei-a sem
a ter premeditado. De repente, a minha cólera projectou-se para fora da minha mão,
como uma luva de vento que tivesse saído dela, como duas, três, quatro, dez
luvas, luvas de eflúvios que, espasmodicamente, e a uma velocidade incrível, se
precipitaram das minhas extremidades manuais, lançando-se para o alvo, para a
cabeça odiosa que atingiram sem demora.
Aquele espasmo
repetido da mão era espantoso. Já não era, em verdade, uma bofetada, nem duas. Tenho
uma natureza reservada e só me exalto no precipício da raiva.
Verdadeira ejaculação
de bofetadas, ejaculação em cascata e aos sobressaltos, a minha mão permanecia
rigorosamente imóvel.
Nesse dia, toquei a
magia.
Um ser sensível
teria visto ali qualquer coisa. Aquela espécie de sombra eléctrica brotando
espasmodicamente da extremidade da minha mão, congregada e reformando-se num
instante.
Para ser
completamente franco, a prima que me tinha irritado acabava de abrir a porta e
de sair quando, apercebendo-me bruscamente da vergonha da ofensa, respondi ao
retardador com um voo de bofetadas que se escaparam realmente da minha mão.
Tinha descoberto a
metralhadora de bofetadas, se assim o posso dizer, mas é o termo mais adequado.
Depois nunca mais
pude ver aquela pretensiosa sem que, da minha mão, as bofetadas se lançassem
como vespas ao seu encontro.
Esta descoberta
compensou-me pelas odiosas palavras que me humilharam. É por isso que às vezes
recomendo a tolerância no seio da família.
Henri Michaux, in Antologia, tradução de Margarida Vale de
Gato, Relógio d’Água, Agosto de 1999, pp. 182-183.
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