Tradição é a alternância democrática, dar quatro maiorias
absolutas a Cavaco, reabilitar corruptos, dizer mal dos ciganos, admirar o
chamado empresário de sucesso que explora os empregados e cresce à custa de mão-de-obra
barata, os recibos verdes, os actos únicos, conduzir na faixa central,
estacionar no lugar reservado a pessoas com deficiência, bloquear passeios e
passadeiras, passar a vida no desenrascanço, pagar fortunas para ver a bola,
queixar-se do preço a que estão os livros, ser chico-esperto, ler o Correio da Manhã, telefonar
para a Antena Aberta, bater na mulher, pagar a factura e calar, meter uma
cunha, queixar-se da vida com os dedos lambuzados de maionese, desconfiar da
polícia, ir às compras em dias de feriado, cumprimentar o senhor presidente da
câmara e sua digníssima esposa, aliviar a bexiga nas esquinas da cidade, cuspir
para o chão, largar lixo em qualquer lado, ir à praia e confundir o mar com um
WC, falar alto, demasiado alto, sentar-se à mesa das refeições com a televisão
ligada, oferecer tablets aos filhos para os distrair e não ter que os aturar, estar
com um grupo de amigos a partilhar as coisas fantásticas que se vêm na net, tipo cenas Harlem Shake e não sei quê, a
net, falar do que não se sabe, dar muita trela à língua e trela curta, muito
curta, à audição, fingir que não se viu quem se viu, não responder a um bom
dia, fugir das testemunhas de Jeová, ter montes de amigos no Facebook, mesmo testemunhas de Jeová, picar o ponto, encolher os ombros, cá
irmos indo, passar férias no Algarve, isto é, procurar descansar no meio da
confusão e arrastar para o meio da confusão os problemas, os traumas, os
nervos, os stresses, as irritações quotidianas, achar que a nossa vida é sempre
mais dramática do que a vida dos outros, encher o bandulho, esbanjar dinheiro
em lixo, por pouco que seja o dinheiro que se tem, como aquelas prendas que se
compram no natal porque ficaria mal não dar qualquer coisinha, passar quatro
anos a dizer mal de um governo e andar todo entusiasmado quando, na véspera de
eleições, esse mesmo governo aproxima-se subitamente dos cidadãos com saquinhos
de rebuçados, prolongar a adolescência pela vida adulta dentro, o voto útil que
não muda absolutamente nada, acorrer às promoções do Pingo Doce, não fazer contas, acreditar reiteradamente nos mesmos mentirosos, não
querer aprender porque, em boa verdade, julga-se sempre que já se sabe tudo, estar
convencido que no seu tempo é que era como se o seu tempo não fosse este tempo,
olhar o passado com nostalgia, sentir o futuro com apreensão, crer na vida
depois da morte sem estar minimamente preocupado com o que a antecedeu, desconfiar do cigano, acreditar na Sonae, olhar
para o depois sem querer saber do antes, ter fraca memória, recalcar, não
querer saber disso para nada enquanto isso corrói por dentro, acreditar na
infalibilidade do papa, colocar trancas na porta depois da casa ter sido
roubada, esperar das seguradoras que cumpram a sua função, comprar barato na fé
de que não sairá caro, contar anedotas com asneiras, rir dos acidentes mais ou
menos inofensivos, programas de apanhados, lixo televisivo, parar para ver o
sinistro, os incêndios de verão, repetir até à náusea os mesmos gestos, os
mesmos erros, achando que é tudo muito normal, pensar que as tradições dos
outros são piores do que as nossas, considerar a gastronomia portuguesa a
melhor do mundo sem nunca ter entrado, vá lá, num restaurante chinês, dizer mal
dos produtos chineses sem olhar para as etiquetas made in da roupa que se traz
vestida, ligar o carro para percorrer distâncias de 100 metros, deixar as luzes
acesas, queixar-se da factura da EDP, ter pena dos desgraçadinhos enquanto se
sonha com as férias do Cristiano Ronaldo nas Bahamas, comentar as tendências
sexuais deste e daquele, fazer disso assunto, ser um pulha durante a semana, um
santo à hora da hóstia, esperar sempre mais dos outros do que aquilo que se
exige a si próprio, justificar os defeitos próprios com os defeitos alheios, espalhar
pelo corpo tatuagens ridículas, querer estar in, isto é, como os tipos das
revistas, copiar-lhes penteados, estilos, trajes, julgando-se muito
original, dizer mal de quem faz enquanto se folheia as páginas do jornal sentado no sofá, sem se fazer nada, dizer desfolhar em vez de folhear, meter acento na palavra cu, estar contra o Acordo Ortográfico e praticar um português miserável, comprar sacos reutilizáveis para não os reutilizar, pensar que a diferença está na cópia, ou nem sequer pensar, sim,
tradição é não pensar sequer, é meter o espírito crítico na gaveta porque, na
realidade, dá uma trabalheira danada reflectir sobre o que quer que seja e,
assim como assim, para que é que serve reflectir sobre o que quer que seja?,
fica sempre tudo na mesma.
5 comentários:
Há milhentas tradições! Uma que eu tenho é ler blogues de pessoas que se insurgem contra algumas tradições, assim como a minha mãe lia jornais e o meu avô lia livros. A diferença é que hoje eu comento. Embora ainda não tenha percebido se é uma boa ou má diferença, tanto comentário neste mundo! Sofia
Pela parte que me toca, os comentários são sempre bem vindos.
A tradição é você ter este país e ele ter chegado até aos dias de hoje. Ah e ter nascido. É simples, não invente...
O (p)rol(blema) da tra(d)ição
O (p)ro(b)l(ema) da tra(d)ição =)
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