Quiseram os deuses, ou os astros, ou porventura os homens,
esses de quem Almada dizia serem apenas desprovidos de qualidades, que vivêssemos
num país repleto de génios, embora emigrados. Não nos faltam heróis, mas a História
prova que foram mais as perdas do que as conquistas. Temos os melhores
futebolistas do mundo, ainda que nunca tenhamos vencido nada
internacionalmente. Somos um país falido de cofres cheios, teorias não
escasseiam, soluções rareiam. Somos também, e muito orgulhosamente, um país de
poetas — que poucos lêem. E quem se atreverá a ler os leitores de poetas? Ainda
para mais em tempos originais, tempos que nos oferecem sábios a cada esquina,
capazes de teorias para tudo, capazes de um conhecimento inimaginável, sem
nunca terem estudado nada, sem nunca terem mergulhado na dúvida, sem nunca
terem sequer vacilado perante aqueles a quem oferecem maiorias absolutas
sucessivas por neles observarem, muito provavelmente, o eco das suas próprias
certezas: raramente se enganam, nunca têm dúvidas. Viva. Ironia das ironias,
ninguém nos tem definido melhor do que os poetas. E não me refiro aos Lusíadas,
nem à Mensagem. Refiro-me, por exemplo, a Ruy Belo, que numa entrevista que
trago sempre de boa memória dizia: «É realmente uma desgraça ter nascido em
Portugal. Sentimo-lo quando nos nasce um filho. Parte para a vida em
desvantagem». Exemplo? «Lia Jorge Amado… Não admiro Jorge Amado. Da última vez
que ele esteve em Lisboa tive a fraqueza de o conhecer e sabe o que ele me
desejou? (…) Êxito, calcule. Não sabe como me ofendeu. Compreendi. Eu sei que,
antes do lançamento de «Dona Flor e seus dois maridos», Jorge Amado já tinha
assegurados mil e quinhentos contos… Êxito, em vida, em Portugal? Se toda a
gente nos lesse, seriam nove milhões. Ora treze milhões nasciam há uns tempos
por ano na China. Qualquer dia — utilizo números de D. Helder Câmara — serão
1500 milhões. «Crescei e multiplicai-vos». Os Estados Unidos consentirão?»
Limpo e certeiro, mais estatística, menos estatística, ninguém se atreverá a
negar a evidência. O diagnóstico do poeta mantém-se actual. A mesma entrevista
aparece citada, a páginas tantas, no volume Literatura Explicativa — ensaios
sobre Ruy Belo (Assírio & Alvim, Junho de 2015), organizado por Manaíra
Aires Athayde, onde se coligem vinte e dois ensaios, de leitores tão distintos
como Eduardo Lourenço e Vasco Graça Moura, Gastão Cruz e Rosa Maria Martelo,
Paula Morão e J. B. Martinho… São textos essencialmente focados em aspectos inesgotáveis
da obra, já que acerca do autor tudo o que havia para dizer foi dito em tempos
por Joaquim Manuel Magalhães: «Tudo aquilo que não aconteceu a Ruy Belo mostra
os mecanismos da merda em que nos fazem chafurdar» (Cf. Os Dois Crepúsculos). Os
leitores de Ruy Belo encontrarão neste volume óptimas pistas para um
aprofundamento do que a Obra Poética oferece, os não leitores poderão
vislumbrar focos de interesse diversos mas complementares. Organizados em seis
partes, estes ensaios reflectem, por exemplo, a relação da poesia com os lugares (destaco os
textos de Ida Alves e Fernando J. B. Martinho, por neles ser problematizada com
especial interesse a relação deste poeta com o mar e com as terras de Espanha),
o trabalho de montagem que Belo dedicava incansavelmente aos seus livros
(excelente, o ensaio de Vasco Graça Moura sobre A Margem da Alegria), a
presença de temáticas clássicas e universais, como seja a temática do amor,
numa poesia onde a morte é uma constante (Luís Mourão propõe um exercício
heterodoxo cujo título fala por si: Do formato mulher em Ruy Belo), a dimensão
de tradutor e ensaísta, contemplada por Joaquim Manuel Magalhães na organização
do volume 3 da Obra Poética de Ruy Belo (Editorial presença, 1984), algumas
leituras comparadas, reflexões sobre a modernidade, contrastes no interior da
Obra, a recepção crítica, um belo exercício de close reading, levado a cabo por
Gustavo Rubim, para o poema
A MISSÃO DAS FOLHAS
Naquela tarde quebrada
contra o meu ouvido atento
eu soube que a missão das folhas
é definir o vento
Não resisto à citação: «O poema, note-se, não define as
folhas, não diz de que folhas ou tipo de folhas está a falar: na sua fala extremamente
elíptica, qualquer folha, todas as folhas, se calhar até as folhas dos livros,
têm a mesma missão: «definir o vento». Como se o poema inventasse aquilo que
sabe, inventasse neste caso a missão que atribui às folhas ou inventasse para
as folhas uma missão que antes do poema não se podia dizer que elas (já)
tivessem. Está aí ao mesmo tempo a força e a fragilidade deste poema, quem sabe
até se não será a força e a fragilidade de toda a poesia, de uma «arte tão
pouco significativa no nosso tempo como a poesia», para repetir a frase bem
conhecida do próprio Ruy Belo» (p. 254). Na última parte deste livro, que fecha
com um inventário exaustivo da Fortuna Crítica de Ruy Belo (curiosa desmesura, que faz de Ruy Belo, sem dúvida, um poeta do séc. XXI), encontramos três
ensaios dedicados à mais apontada, mas sempre conflituosa, problemática, complexa trindade beliana: deus,
morte e arte/poesia. Ainda que não existam grandes revelações, nem entusiasmos
desmesurados que ergam o ensaio acima da sobriedade académica, vale a
pena passar os olhos por este volume. Mais que não seja para voltar a Ruy Belo,
regresso que se quer constante como o das estações. Até que o mar nos leve a
todos para o fundo do silêncio.
4 comentários:
Ando precisamente a ler o volume 3 da obra poética.
:)
É uma pirata encantadora, a menina Cuca. :-)
Fica sempre qualquer coisa, quando lemos os leitores de poetas. :)
Agradecido. :-)
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