terça-feira, 23 de junho de 2015

TWO MULES FOR SISTER SARA (1970)




   Don Siegel (n. 1912 – m. 1991) começou a filmar num período que podemos considerar a época dourada do western, algures entre 1940 e 1950. Na sua não muito extensa carreira enquanto realizador encontramos colaborações relevantes com algumas das figuras mais significativas do género. Já aqui referi Stranger on the Run (1967), concebido para o pequeno ecrã com um actor maior no centro das atenções: Henry Fonda. O último filme de John Wayne, The Shootist (1976), foi realizado por Siegel. Sublinhe-se, igualmente, a colaboração com Sam Peckinpah, autor de westerns que por certo influenciaram o estilo musculado do autor de Dirty Harry (1971) — uma das cinco obras que assinalam a estreita cooperação com Clint Eastwood. Os outros foram Coogan’s Bluff (1968), The Beguiled (1971), Escape from Alcatraz (1979) e este Two Mules for Sister Sara/Os Abutres Têm Fome (1970). Não admira que Eastwood tenha dedicado Unforgiven, para muitos a sua obra-prima, ao mestre, honra partilhada com Sergio Leone. De resto, quando Two Mules for Sister Sara estreou, o pistoleiro fetiche de Leone já tinha reservado o seu lugar no Olimpo da sétima arte com uma trilogia de sonho: Per un pugno di dollari (1964), Per qualche dollaro in più (1965) e Il Buono, Il Bruto, Il Cattivo (1966).
   Two Mules for Sister Sara tem muito que ver com os filmes de Leone, nomeadamente nos ambientes hispânicos e na música composta por Ennio Morricone. Mas não só. A história, concebida por Budd Boetticher — outro génio das cowboyadas— remete para argumentos como o de Vera Cruz, ou seja, para as aventuras dos sobreviventes da Confederação que, após a guerra civil, tentaram a sorte por terras mexicanas. Hogan, a personagem de Eastwood, ocupa aqui precisamente esse papel solitário e aventuroso do mercenário, num registo bem-disposto capaz de desdramatizar a situação em proveito do puro entretenimento. Pelo caminho, cruza-se com a Irmã Sara, uma impecável Shirley MacLaine, que acabou por ver este seu desempenho premiado no registo da comédia. Hogan salva Sara de uma tentativa de violação, Sara salvará Hogan de uma flecha atirada por índios tementes à cruz de Cristo. Aproximados num contexto de fuga, tornar-se-ão inseparáveis após a queda de disfarces que os obrigam ao refreio das paixões.
   Embora com propósitos diferentes, ambos servem, cada qual à sua maneira, as forças libertadoras de Benito Juárez contra a opressão francesa no território de Chihuahua. Já sem causas idealistas a motivarem-lhe as acções, Hogan pretende apenas metade do tesouro francês depositado numa fortaleza que tomará de assalto com os independentistas. O assalto à fortaleza é o grande momento do filme, sequência de planos onde o absurdo e o realismo se abraçam com uma determinação capaz de transformar a violência dos efeitos em tiradas de humor acinzentado. Não podemos perder de vista que estamos em 1970, os EU estão prestes a sair humilhados do Vietname, as suas ruas enchem-se de manifestações contra a guerra, o amor livre ganha terreno no submundo da contracultura, o absurdo existencial é uma bomba atómica no centro da sociedade norte-americana. Neste sentido, talvez a dimensão mais estimulante de um filme que começa por nos mostrar uma aranha a ser pisada pela pata de um cavalo seja, precisamente, essa dimensão onde a violência não se expõe a partir de pressupostos que sugerem uma vontade deliberada de chocar ou de provocar sensações básicas.
   Não estamos no campo da arte propagandística, pelo menos não tanto quanto parecemos estar no domínio da arte enquanto vector libertário de uma sociedade ameaçada pelo preconceito. A heterodoxia da freira interpretada por Shirley MacLaine emparceira com o lado aventureiro da personagem de Eastwood num contexto de pura diversão, acabando a própria acção por disfarçar a sua essência ao desviar do foco de interesse a densidade dramática e o lado trágico e intenso que, ao longo dos anos, foram fazendo do western um género altamente moral. Don Siegel desmistifica-o, a bem do seu público em particular e da história do cinema em geral. Estamos no campo da comédia de horrores, do entretenimento ainda não esvaziado de conteúdo (os surrealistas chamavam-lhe humor negro), assegurado por desempenhos intocáveis e garantido pelo saber acumulado dos grandes mestres: sejam eles o autor da história, o realizador, ou o homem que a musicou. Uma dúvida fica no ar: disfarçada de freira, Sara está do lado da causa independentista. Onde será que estavam as freiras propriamente ditas?

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