Don Siegel (n. 1912 – m. 1991) começou a filmar num
período que podemos considerar a época dourada do western, algures entre 1940 e 1950. Na sua não muito extensa carreira enquanto
realizador encontramos colaborações relevantes com algumas das figuras mais
significativas do género. Já aqui referi Stranger on the Run (1967), concebido
para o pequeno ecrã com um actor maior no centro das atenções: Henry Fonda. O
último filme de John Wayne, The Shootist (1976), foi realizado por Siegel. Sublinhe-se,
igualmente, a colaboração com Sam Peckinpah, autor de westerns que por certo
influenciaram o estilo musculado do autor de Dirty Harry (1971) — uma das cinco
obras que assinalam a estreita cooperação com Clint Eastwood. Os outros foram
Coogan’s Bluff (1968), The Beguiled (1971), Escape from Alcatraz (1979) e este Two
Mules for Sister Sara/Os Abutres Têm Fome (1970). Não admira que Eastwood tenha
dedicado Unforgiven, para muitos a sua obra-prima, ao mestre, honra partilhada
com Sergio Leone. De resto, quando Two Mules for Sister Sara estreou, o pistoleiro
fetiche de Leone já tinha reservado o seu lugar no Olimpo da sétima arte com
uma trilogia de sonho: Per un pugno di dollari (1964), Per qualche dollaro in più
(1965) e Il Buono, Il Bruto, Il Cattivo (1966).
Two Mules for Sister Sara tem
muito que ver com os filmes de Leone, nomeadamente nos ambientes hispânicos e na
música composta por Ennio Morricone. Mas não só. A história, concebida por Budd
Boetticher — outro génio das cowboyadas— remete para argumentos como o de Vera Cruz, ou
seja, para as aventuras dos sobreviventes da Confederação que, após a guerra
civil, tentaram a sorte por terras mexicanas. Hogan, a personagem de Eastwood,
ocupa aqui precisamente esse papel solitário e aventuroso do mercenário, num
registo bem-disposto capaz de desdramatizar a situação em proveito
do puro entretenimento. Pelo caminho, cruza-se com a Irmã Sara, uma impecável
Shirley MacLaine, que acabou por ver este seu desempenho premiado no registo da
comédia. Hogan salva Sara de uma tentativa de violação, Sara salvará Hogan de
uma flecha atirada por índios tementes à cruz de Cristo. Aproximados num
contexto de fuga, tornar-se-ão inseparáveis após a queda de disfarces que os
obrigam ao refreio das paixões.
Embora com propósitos diferentes, ambos servem, cada qual à sua maneira,
as forças libertadoras de Benito Juárez contra a opressão francesa no
território de Chihuahua. Já sem causas idealistas a motivarem-lhe as acções,
Hogan pretende apenas metade do tesouro francês depositado numa fortaleza que
tomará de assalto com os independentistas. O assalto à fortaleza é o grande
momento do filme, sequência de planos onde o absurdo e o realismo se abraçam
com uma determinação capaz de transformar a violência dos efeitos em tiradas de
humor acinzentado. Não podemos perder de vista que estamos em 1970, os EU estão
prestes a sair humilhados do Vietname, as suas ruas enchem-se de manifestações
contra a guerra, o amor livre ganha terreno no submundo da contracultura, o
absurdo existencial é uma bomba atómica no centro da sociedade norte-americana.
Neste sentido, talvez a dimensão mais estimulante de um filme que começa por
nos mostrar uma aranha a ser pisada pela pata de um cavalo seja, precisamente, essa dimensão
onde a violência não se expõe a partir de pressupostos que sugerem uma vontade
deliberada de chocar ou de provocar sensações básicas.
Não estamos no campo da
arte propagandística, pelo menos não tanto quanto parecemos estar no domínio da
arte enquanto vector libertário de uma sociedade ameaçada pelo preconceito. A heterodoxia
da freira interpretada por Shirley MacLaine emparceira com o lado aventureiro
da personagem de Eastwood num contexto de pura diversão, acabando a própria acção
por disfarçar a sua essência ao desviar do foco de interesse a densidade
dramática e o lado trágico e intenso que, ao longo dos anos, foram fazendo do
western um género altamente moral. Don Siegel desmistifica-o, a bem do seu público
em particular e da história do cinema em geral. Estamos no campo da comédia de
horrores, do entretenimento ainda não esvaziado de conteúdo (os surrealistas
chamavam-lhe humor negro), assegurado por desempenhos intocáveis e garantido
pelo saber acumulado dos grandes mestres: sejam eles o autor da história, o
realizador, ou o homem que a musicou. Uma dúvida fica no ar: disfarçada de freira, Sara está do lado da causa independentista. Onde será que estavam as freiras propriamente ditas?
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