Não será exagero considerar Paulo Leminski (n. 1944 – m. 1989)
um furacão que passou pelas letras brasileiras, deixando em tão curtos 45 anos
de vida um legado imenso. Resultado do cruzamento de um emigrante polaco com
uma afro-brasileira, foi desde muito cedo acolhido pelos mestres do concretismo
brasileiro (Haroldo de Campos e Décio Pignatari à cabeça). Casou, pela primeira
vez, com apenas 17 anos, foi mestre de judo, frequentou e assimilou a cultura hippie
em tempo real, perdeu um de três filhos, escreveu canções, poemas, o mais
joyceano dos romances em língua portuguesa (aqui), traduziu imenso (dominava 6
línguas, entre elas o japonês), uma produção intensa e diversificada que a
cirrose interrompeu precocemente. Da obra ensaística, destacam-se quatro textos
biográficos publicados durante a década de 1980. Foram posteriormente reunidos
num só volume com o título genérico, mas muito irónico, de Vida (a primeira
edição data de 1990, a que me chegou, através de mão amiga, é a da Companhia
das Letras, Setembro de 2013). A ideia da reunião foi do próprio Leminski,
antes de falecer, sendo disso testemunho um depoimento de 24 de Junho de 1985
reproduzido à entrada desta edição. O comovido e comovente texto de apresentação
da primeira edição é de Alice Ruiz S, viúva de Leminski: «Agora, relendo essas
biografias, eu o reencontro». Daí a ironia do título. Sendo textos sobre outras
vidas, estes textos revelam muito de quem os escreve, focam-se em
interlocutores que de algum modo espelham aspectos determinantes da vida do biógrafo.
Não o sendo, são, em certo sentido, a melhor das autobiografias. Relevante a
escolha das personagens: Cruz e Sousa, Bashô, Jesus e Trótski, quatro dimensões
fundamentais, quatro elementos, na vida de uma vida como foi a do autor de Um
Milhão de Coisas: poesia, filosofia, religião, política. Meio preto, Leminski
escolheu um poeta preto, o mais improvável dos poetas brasileiros, para
intermediário de um discurso sobre o outro que não deixa de ser sobre o próprio:
«Certas vidas são hiperbólicas» (p. 21), deixa logo de aviso. E mais adiante
interroga-se sobre a poesia de Cruz e Sousa como todos nós podíamos interrogar-nos sobre a poesia de Paulo Leminski: «Afinal, que é a poesia senão
discurso-desvio, mensagem-surpresa, que, essencialmente, contraria os trâmites
legais da expressão, numa dada sociedade?» (p. 29) Atento aos detalhes, exegeta
exímio, evita acumulações de factos concentrando esforços na descoberta do homem
através da sua criação. Faz o mesmo com Bashô, o ex-samurai, o viandante, oferecendo
ao leitor desprevenido uma maravilhosa lição sobre “haikai” e filosofia zen. Um
parêntesis para a citação polémica:
O conceito de
santidade, porém, já não faz sentido, no Ocidente, desde o século XVIII, quando
a vanguarda intelectual da burguesia materialista, feita à imagem e semelhança
de suas mercadorias, fechou o grande negócio: matou Deus e deuses, neles
abolindo, evidentemente, o rei, o bispo, o barão, as corporações, a Idade Média,
papai e mamãe, enfim.
O assassinato pôde
ser pago em várias e módicas prestações mensais.
Curiosamente, o ateísmo,
essa postura cósmico-ideológica da burguesia iluminista (Beyle, Holbach, D’Alembert,
Diderot, seus porta-vozes teóricos na França das Luzes), foi incorporado ao
programa marxista, que se pretendeu representar, no plano dos conceitos, o
universo das massas trabalhadoras, exatamente, a classe explorada pelo capital,
essa abstração, e pela burguesia, sua detentora: Marx, um burguês branco, do século
XIX.
Se santos são
aqueles que mantêm comunicação privilegiada com alguma transcendência, Deus ou
deuses, com a morte destes, não há mais santos. Só que tem um problema. É que há
santos. E sempre haverá. Santos artistas, santos poetas, santos atletas, santos
marxistas, inclusive.
Que outro adjetivo
calharia, por exemplo, para os bolcheviques de Outubro, esse Lênin, Trótski, Stálin,
Kamenev, Zinóviev, Bukhárin, Rádek, Dzerjhinski, santos da Revolução, ratos de
esgoto durante tantos anos, diante da polícia czarista, carregando acesa a
chama de uma ideia, evangelhos, frases, diretrizes, coerências,
frasespalavras-chave?
Humanamente, só nos
santos dá para ver os deuses: só nos radicais, dá pra ver a Ideia.
Isto sobre Bashô, gerando pontes para os senhores que se
seguem: Jesus e Trótski. Está tudo ligado na cabeça de Leminski, é a Vida. E
ainda que discordemos da sua concepção ideológica do ateísmo (explicitamente materialista,
nega a santidade precisamente pela recusa do transcendente), impossível não colher
nestas páginas 94-95 um forte estímulo à reflexão sobre os paradoxos da existência
e as fragilidades do dogma. É uma escrita que testa resistências, experimenta
ligações imprevisíveis e improváveis, fá-las parecer possíveis, mergulha no ADN
das palavras para delas retirar e fazer sobressair a lógica do absurdo. Precisamente
isso o que mais importa na história de Jesus e séquitos. Não a patranha do
Jesus histórico, improvável e insustentável, mas o Jesus personagem, o
revolucionário que mudou o mundo através do uso da palavra, através da parábola,
o poeta dos poetas, as vibrações que perduram da sua passagem/aparição. Talvez
Deus seja isso, diz. Talvez Deus seja poesia, o real absoluto. Visão romântica,
por certo, mas coincidente com o mosaico fabuloso e inverosímil do jovem nazir.
Especulativa, a vida do Jesus aqui retratado é como os “processos combinatórios
codificados” da cabala. Conclui-se: Jesus adorava jogos de palavras. Talvez
fosse um concretista antes do concretismo:
Essa críptica
escritura crística traduziu-se, no cristianismo primitivo, pelo modo como os
primeiros cristãos, perseguidos, se identificavam e, esotericamente, se
comunicavam: através do desenho de um peixe, querendo dizer, em grego, ikhtys =
“peixe”.
Talvez, haja aí a
alusão à condição de pescadores dos primeiros apóstolos, discípulos diretos de
Jesus.
Na realidade,
trata-se de um signo muito complexo, um logogrifo, acróstico, no qual as letras
da palavra grega para “peixe” significam I (Iésus, “Jesus”), Kh (Khristós, “Cristo”),
T (Theou, “de Deus”), Y (Yiós, “filho”) e S (Sóter, “Salvador”).
O desenho de um
peixe, assim, para um cristão dos primeiros tempos, das cidades gregas que
bordavam o Mediterrâneo, significava e dizia Jesus Cristo, Filho de Deus,
Salvador.
Estamos no campo dos doces talvez, a maravilha das suposições,
«parábolas e trocadilhos», terreno fértil da poesia, dada a alusões, vozes
segundas e terceiras sobre uma mesma imagem, sobre uma mesma voz da qual tudo e
o seu contrário pode ser dito. Lá está o «discurso-desvio, mensagem-surpresa, que, essencialmente, contraria os trâmites legais da expressão, numa dada sociedade». Uma linguagem universal, portanto. Uma utopia,
ameaçadora da normalidade vigente, do paradigma, como toda a utopia o é. Abrangente.
Sedutora. Cativante. A linguagem da alma: «O dentro e o fora começam a desaparecer:
exterior e interior tendem a se encontrar num ponto infinito. / Jesus está
inventando a alma: o supersigno que todos somos “dentro”. Essa, talvez, foi a
sua revolução, a mais imperceptível de todas. / Jesus ocupa um lugar muito
especial na lista dos Cromwells, Robespierres, Dantons, Zapatas, Villas, Lênins,
Trótskis, Mãos, Castros, Guevaras, Ho-Chi-Mihns, Samoras Machel» (p. 217). E
chegamos a Trótski, o revolucionário apaixonado, a quem é dedicada a mais
extensa das biografias. E também a mais convencional, porque colada a factos
históricos, porque confinada à história da Rússia (recordemos as raízes polacas
do autor), a um intelectual da Revolução caído em desgraça por inveja? ambição?
traição? Judeu ucraniano, de seu verdadeiro nome Liev Davidovitch, Trótski é o
músculo que faltava a esta Vida. Pintado nos defeitos como nas virtudes, serve
para reforçar a dimensão material da passagem pela terra: «Se o conceito de
santidade, significando autoentrega idealista a uma causa maior, ainda faz
algum sentido, bem que poderíamos aplicá-lo a esses “santos da Revolução”, heróis
dedicados à mais difícil das tarefas, a transformação radical do ordenamento
sociopolítico-econômico de uma sociedade. / Os santos, claro, são cruéis. Suas
virtudes nos colocam em xeque, eles estabelecem os limites, os recordes, os máximos
do viver humano. A integridade do seu sacrifício zomba de nossa mediania» (p.
286). Talvez este elogio do sacrifício seja exagerado, mas não deixa de ser
curiosa a aproximação que incute entre os planos material e ideológico. A Terra
em busca do Céu, ou, como pretendiam os sovietes, o Céu na Terra. Guerra,
crueldade, morte, execução, são, como se costuma dizer, o peito às balas, o
corpo ao manifesto, o fim destinado dos mártires. A cruz, a errância, a
perseguição, o exílio entre os seus ou à distância, é o que o futuro decreta para
o inimigo das convenções. Nos quatro pilares do edifício Leminski é isso que
vislumbramos, uma tendência para perturbar através da palavra (escrita, oral…),
a palavra inquietadora e desassossegante da poesia. A palavra viva da Vida. Não admira que sejam estes os seus mestres.
1 comentário:
Fico feliz por ver mais um português conhecedor de Paulo Leminski. Descobri-o há uns meses, li alguma poesia e ensaística online, e encomendei do Brasil o Catatau, juntament com o Galáxias do Haroldo de Campos. Oxalá esses livros se publicassem por cá. Vem tanto peso-pluma de lá, nada justifica negligenciar mestres da Língua Portuguesa.
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