terça-feira, 7 de julho de 2015

CASCATA DE PITÕES DAS JÚNIAS



Digamos que estamos na paisagem para o miradouro. A inversão não é meramente retórica, há paisagens que dão para miradouros. E nós estamos numa dessas “paisagens para abolir os gritos”, como diria Michaux (traduzido por Herberto Helder). O sítio onde nos encontramos não é necessariamente o sítio onde o nosso corpo está. O nosso corpo pode estar num determinado ponto, mas a cabeça, o que nela se processa, leva-nos por aí à sombra do milhafre. Longe de serem aforísticos, os poemas de Michaux revelam a natureza em versos que, mais do que descreverem, definem e sintetizam como um fragmento da paisagem, deste ângulo, é capaz de nos resumir. Fala de “árvores como sistemas nervosos ensanguentados”, na Cordilheira dos Andes vê montanhas: “Despenham-se, assombram-se, suspendem-se, sossegam as línguas!”. Gosto de montanhas que sossegam as línguas, julgo entendê-las. Eu próprio sinto, e não precisaria de Michaux para o sentir, que as montanhas sossegam as línguas. Neste lugar de línguas sossegadas, a água escorre pela pedra como o sangue jorra de uma ferida aberta. Talvez não seja uma ferida, talvez a palavra deturpe, atraiçoe, o objecto nomeado. Evitemos comparações, estamos numa paisagem para um miradouro e encanta-nos o ruído das águas, estrondoso silêncio das águas, enquanto os olhos adejam a vegetação espalhada pelas pedras. Sobre o Lago de San Pablo: “Os lagos em geral são pura alegria, / Levam barcos e risos, estão cercados por casas pequenas”. Vimos alguns lagos pelo caminho, vimos albufeiras sem barcos nem casas pequenas nas margens. Lagos inventados pelo progresso, gerados pelo homem, o que resta de homem numa humanidade há muito esquecida nas figuras rupestres ao largo de lagoas algo gulosas. Não há poesia nesses lagos, há apenas um miradouro para a paisagem. Mas aqui “a floresta parece unida, una”, por isso digo que há uma paisagem para o miradouro. É a paisagem quem nos olha e contempla, somos o tronco vergado, somos parte integrante da paisagem como uma árvore espera ser trepada por alguém que lhe colha o fruto. Novamente, evitemos comparações. É uma tristeza para as árvores darem frutos que ninguém colhe, vê-los cair de maduros sobre a terra. É uma alegria para a terra, mas uma tristeza para as árvores. O que pretendo tornar claro é isto: a cascata chega-nos ao corpo através do som, podemos não tocá-la com as mãos mas é como se sentíssemos a sua frescura entrar-nos pelos ouvidos. E de algum modo bebemos destas águas, de algum modo elas são a fonte que sacia a sede da alma desassossegada. Tal qual o poeta escreve: “uma canção em língua estranha”, a língua aquietada pelas montanhas.

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