sexta-feira, 28 de agosto de 2015

JOSÉ MARÍA MERINO

Por razões difíceis de compreender, as editoras portuguesas continuam, na sua generalidade, avessas à publicação de micronarrativa. As que apostam em contistas, fazem-no quase sempre pela via confortável (clássicos, autores contemporâneos relativamente populares…). O gozo do risco não existe, salvo raríssimas excepções. E a vontade de surpreender choca invariavelmente com os valores maiores da aposta comercial certa. Esta atitude leva a que os leitores portugueses passem ao lado de alguns dos textos mais brilhantes que a História da Literatura arquivará nas suas vastas prateleiras. Entre eles, constarão os contos do espanhol José María Merino (n. 1941). Ficcionista exímio, tem um currículo invejável por terras de Cervantes. Começou por publicar poesia, inclinando-se posteriormente para o conto nas suas formas mais breves. Tomemos de exemplo este Cuentos del libro de la noche (Alfaguara, 2005). A epígrafe pedida de empréstimo a Chuan Tzú — «En el libro de la noche / nuestras páginas están en blanco.» —introduz-nos num universo onírico, preenchido por sonhos, alucinações, equívocos, pesadelos, recalcamentos, o universo onde o inconsciente adquire o estatuto de "real absoluto". As quase noventa micronarrativas que compõem o libro vagueiam no mundo crepuscular do sonambulismo, levam-nos a zonas intermédias, paradoxais, transportam-nos para uma realidade efectiva que tendemos a julgar absurda por haver entre as suas imagens e a percepção consciente da realidade uma distorção semelhante à do corpo projectado por reflexo num espelho. No entanto, esse reflexo é experimentado com a mesma intensidade com que experimentamos, através dos sentidos,  o mundo à nossa volta. Daí que a sombra, o fantasma, o espírito, os seres imaginários, as falsificações à Marco Denevi, se conjuguem coerentemente num palco onde o inanimado ganha vida e esta se define por tudo quanto se faça presente nas múltiplas formas que um ser tem de se apresentar. Noutras ocasiões, é simplesmente a noite enquanto geografia onírica que serve de palco a personagens ambíguas e obscuras. Arrisco uma versão de Micronovela, homenagem declarada a Horacio Quiroga:

MICRONOVELA


   Ela chegou na embarcação de sexta-feira à tarde, quando o sol recortava no pinhal uma sombra suave e ocre. Levava uma pequena bolsa onde guardava o telemóvel, manipulado amiúde com impaciência. Ele percorria a ilha imerso num ensimesmamento que o afastava das praias e dos bares. O seu telefone também não lhe servia para conseguir a comunicação apressadamente tentada.
   Encontraram-se naquela mesma noite, junto a uma das tabernas do porto pesqueiro. Estavam sós no extremo do paredão e a proximidade dos seus corpos despertou em ambos a vontade de uma companhia.
   Ela mostrou-se despreocupada, jovial, e não lhe contou a verdade sobre a sua origem. Ele também aparentou serenidade e mentiu ao falar da sua vida quotidiana. Tais dissimulações serviram, porém, para que descobrissem um no outro um certo à-vontade na noite. Passaram-na juntos, assim como os dias seguintes.
  Na segunda-feira, a meio da manhã, quando estavam deitados na praia, o telemóvel dela tocou. Pegou nele para falar, a voz excitada. Ele começou a observá-la com estranheza, como se nunca a tivesse visto antes. Nessa mesma tarde, o telemóvel dele recebeu uma chamada que atendeu com alegria. Ao pôr-do-sol, enquanto ela subia para a embarcação, ele aguardava a chegada de um avião.
   Nunca mais voltaram a ver-se.

Noutros contos, José María Merino reinventa a realidade. Como quando a observação de uma fotografia antiga instiga uma história, colocando-se o narrador na posição do especulador que imagina os factos originais aquele registo da realidade. Há momentos cómicos, outros verdadeiramente poéticos. E há apontamentos quotidianos de uma perspicácia reveladora da perícia do contista:

SENHOR E CÃO

   Uma promoção importante na sua carreira, com mudança para a cidade grande, levou-o a instalar-se num bairro distinto. Ao entardecer, via os vizinhos elegantes, circunspectos, passearem os seus cães pelas ruas íntimas do bairro. Aqueles homens e mulheres pegavam na trela com os olhos perdidos, andando ensimesmados, e ao comparar tal impavidez com a vivacidade dos animais que os precediam ocorreu-lhe que aqueles cães de raça, aqueles exemplares valiosíssimos, é que levavam de passeio os donos. O passatempo dos seus vizinhos levou-o um dia a entrar num canil para solicitar um cão. Trouxeram-lho esta tarde a casa e ambos têm estado a observar-se demoradamente. O cão é peludo, com enormes mandíbulas alargadas e pequenas orelhas bicudas. Muito jovem, salta à sua volta. Subitamente deixa de saltar, busca uma cinta no cesto onde o transportaram e aproxima-se com ela na boca. Vamos passear, supõe que pense o cão, e ele, abanando as nádegas num impulso repentino, responde com um latido radiante.

2 comentários:

Inév Vie disse...

Os cães é que passeiam os donos, tal como os gatos é que se deixam aparentemente domesticar, parece-me, faz muitos anos, evidente.

Outro deleite é observar como os cães se parecem com os supostos donos, ou o inverso. Observe-se bem o cão e depois o suposto dono, é uma delícia quantas parecenças.

Os cães dos ricos transportam consigo a mesma estupidez dos donos, o cão inteligente é o rafeiro, todos sabemos, e o dono rafeiro é potencialmente igual.

O gato só se dá ao companheiro e não ao dono, companheiro que respeita sua liberdade, do gato, e defende a sua, do humano.

A mentira parece ser a base das relações humanas, a verdade mata, cria a inveja, o veneno fatal dos menores de espírito, raça dominante.

Obrigado pela partilha, editores, que o diga Camões.

O jogo é sujo, sempre foi e sempre será. Quem não joga escreve coisas assim, deliciosas para seus pares.
O que a morte trará, ninguém sabe e pouco importa.

Abraço, Inév

hmbf disse...

obrigado pelo comentário