Por razões difíceis de compreender, as editoras
portuguesas continuam, na sua generalidade, avessas à publicação de
micronarrativa. As que apostam em contistas, fazem-no quase sempre pela via
confortável (clássicos, autores contemporâneos relativamente populares…). O
gozo do risco não existe, salvo raríssimas excepções. E a vontade de
surpreender choca invariavelmente com os valores maiores da aposta comercial
certa. Esta atitude leva a que os leitores portugueses passem ao lado de alguns
dos textos mais brilhantes que a História da Literatura arquivará nas suas
vastas prateleiras. Entre eles, constarão os contos do espanhol José María
Merino (n. 1941). Ficcionista exímio, tem um currículo invejável por terras de
Cervantes. Começou por publicar poesia, inclinando-se posteriormente para o
conto nas suas formas mais breves. Tomemos
de exemplo este Cuentos del libro de la noche (Alfaguara, 2005). A epígrafe
pedida de empréstimo a Chuan Tzú — «En el libro de la noche / nuestras páginas
están en blanco.» —introduz-nos num universo onírico, preenchido por sonhos,
alucinações, equívocos, pesadelos, recalcamentos, o universo onde o
inconsciente adquire o estatuto de "real absoluto". As quase noventa
micronarrativas que compõem o libro vagueiam no mundo crepuscular do
sonambulismo, levam-nos a zonas intermédias, paradoxais, transportam-nos para
uma realidade efectiva que tendemos a julgar absurda por haver entre as suas
imagens e a percepção consciente da realidade uma distorção semelhante à do corpo
projectado por reflexo num espelho. No entanto, esse reflexo é experimentado
com a mesma intensidade com que experimentamos, através dos sentidos, o mundo à nossa volta. Daí que a sombra, o
fantasma, o espírito, os seres imaginários, as falsificações à Marco Denevi, se
conjuguem coerentemente num palco onde o inanimado ganha vida e esta se define
por tudo quanto se faça presente nas múltiplas formas que um ser tem de se
apresentar. Noutras ocasiões, é simplesmente a noite enquanto geografia onírica
que serve de palco a personagens ambíguas e obscuras. Arrisco uma versão de
Micronovela, homenagem declarada a Horacio Quiroga:
MICRONOVELA
Ela chegou na
embarcação de sexta-feira à tarde, quando o sol recortava no pinhal uma sombra
suave e ocre. Levava uma pequena bolsa onde guardava o telemóvel, manipulado
amiúde com impaciência. Ele percorria a ilha imerso num ensimesmamento que o
afastava das praias e dos bares. O seu telefone também não lhe servia para conseguir
a comunicação apressadamente tentada.
Encontraram-se
naquela mesma noite, junto a uma das tabernas do porto pesqueiro. Estavam sós
no extremo do paredão e a proximidade dos seus corpos despertou em ambos a
vontade de uma companhia.
Ela mostrou-se despreocupada, jovial, e não
lhe contou a verdade sobre a sua origem. Ele também aparentou serenidade e
mentiu ao falar da sua vida quotidiana. Tais dissimulações serviram, porém, para
que descobrissem um no outro um certo à-vontade na noite. Passaram-na juntos,
assim como os dias seguintes.
Na segunda-feira,
a meio da manhã, quando estavam deitados na praia, o telemóvel dela tocou.
Pegou nele para falar, a voz excitada. Ele começou a observá-la com estranheza,
como se nunca a tivesse visto antes. Nessa mesma tarde, o telemóvel dele
recebeu uma chamada que atendeu com alegria. Ao pôr-do-sol, enquanto ela subia
para a embarcação, ele aguardava a chegada de um avião.
Nunca mais
voltaram a ver-se.
Noutros contos, José María Merino reinventa a realidade.
Como quando a observação de uma fotografia antiga instiga uma história,
colocando-se o narrador na posição do especulador que imagina os factos originais aquele registo da realidade. Há momentos cómicos, outros verdadeiramente
poéticos. E há apontamentos quotidianos de uma perspicácia reveladora da
perícia do contista:
SENHOR E CÃO
Uma promoção
importante na sua carreira, com mudança para a cidade grande, levou-o a
instalar-se num bairro distinto. Ao entardecer, via os vizinhos elegantes,
circunspectos, passearem os seus cães pelas ruas íntimas do bairro. Aqueles
homens e mulheres pegavam na trela com os olhos perdidos, andando ensimesmados,
e ao comparar tal impavidez com a vivacidade dos animais que os precediam
ocorreu-lhe que aqueles cães de raça, aqueles exemplares valiosíssimos, é que
levavam de passeio os donos. O passatempo dos seus vizinhos levou-o um dia a
entrar num canil para solicitar um cão. Trouxeram-lho esta tarde a casa e ambos
têm estado a observar-se demoradamente. O cão é peludo, com enormes mandíbulas
alargadas e pequenas orelhas bicudas. Muito jovem, salta à sua volta.
Subitamente deixa de saltar, busca uma cinta no cesto onde o transportaram e
aproxima-se com ela na boca. Vamos passear, supõe que pense o cão, e ele,
abanando as nádegas num impulso repentino, responde com um latido radiante.
2 comentários:
Os cães é que passeiam os donos, tal como os gatos é que se deixam aparentemente domesticar, parece-me, faz muitos anos, evidente.
Outro deleite é observar como os cães se parecem com os supostos donos, ou o inverso. Observe-se bem o cão e depois o suposto dono, é uma delícia quantas parecenças.
Os cães dos ricos transportam consigo a mesma estupidez dos donos, o cão inteligente é o rafeiro, todos sabemos, e o dono rafeiro é potencialmente igual.
O gato só se dá ao companheiro e não ao dono, companheiro que respeita sua liberdade, do gato, e defende a sua, do humano.
A mentira parece ser a base das relações humanas, a verdade mata, cria a inveja, o veneno fatal dos menores de espírito, raça dominante.
Obrigado pela partilha, editores, que o diga Camões.
O jogo é sujo, sempre foi e sempre será. Quem não joga escreve coisas assim, deliciosas para seus pares.
O que a morte trará, ninguém sabe e pouco importa.
Abraço, Inév
obrigado pelo comentário
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