quarta-feira, 2 de setembro de 2015

ACOLHER

Este excerto leva-nos à questão do dia, questão que, na realidade, é de há muitos anos a esta parte, embora tenha vindo a ser varrida para debaixo de tapetes, porventura persas, porventura de Arraiolos, enquanto os tontos do costume lá foram lembrando: alguma coisa tem de ser feita. Há muito que o Mediterrâneo foi transformado numa vala comum, sob o olhar complacente, impávido e sereno de uma classe política para quem as dívidas soberanas são isso mesmo, soberanas, e, como tal, o mundo começa e acaba nas suas exigências e, consequentemente, na saúde dos mercados. Mas os mercados estão doentes, terrivelmente doentes, e as pessoas também, as pessoas que frequentam os mercados, mais doentes é difícil de imaginar. Não basta mostrar-lhes imagens dos corpos que dão à costa, sejam de crianças, velhos, adultos, homens ou mulheres. Não basta dar-lhes números concretos. Creio mesmo que nem levando-os aos locais eles se solidarizariam com a miséria de quem foge da matança que as falsas primaveras árabes, tão elogiadas e acalentadas por meio mundo estupidificado, impulsionaram. Enfim, o que temos hoje choca-nos como um murro no estômago mas exige-nos um passinho à frente da hipocrisia com que vamos acomodando os dias. Perante a possibilidade de acolhimento de refugiados, começam já a ouvir-se queixumes. Que vêm dar cabo do turismo, que vêm roubar empregos, que vêm comer do que é nosso, estrangular um pobre país que só quer comemorar a conquista de Ceuta em paz e sossego, deitado sobre a memória dos seus heróis. Não é problema nosso, dirão uns. Que se amanhem no país deles, dirão outros. E estes mesmos poderão ir expurgando a consciência com gestos caridosos sazonalmente determinados, esmolas aos pobres, likes na coisa. Temos, porém, um problema. A caridadezinha não chega, a tadinhice não solucionará o problema. Será mesmo fundamental, necessário, impor-se-á como uma inevitabilidade sermos verdadeiramente solidários. E isso passará por acolher, sob pena de, não o fazendo, inscrevermos mais uma vez na história a nossa criminosa indiferença.

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