Este excerto leva-nos à questão do dia, questão que, na
realidade, é de há muitos anos a esta parte, embora tenha vindo a ser varrida
para debaixo de tapetes, porventura persas, porventura de Arraiolos, enquanto
os tontos do costume lá foram lembrando: alguma coisa tem de ser feita. Há
muito que o Mediterrâneo foi transformado numa vala comum, sob o
olhar complacente, impávido e sereno de uma classe política para quem as
dívidas soberanas são isso mesmo, soberanas, e, como tal, o mundo começa e
acaba nas suas exigências e, consequentemente, na saúde dos mercados. Mas os
mercados estão doentes, terrivelmente doentes, e as pessoas também, as pessoas
que frequentam os mercados, mais doentes é difícil de imaginar. Não basta
mostrar-lhes imagens dos corpos que dão à costa, sejam de crianças, velhos,
adultos, homens ou mulheres. Não basta dar-lhes números concretos. Creio mesmo
que nem levando-os aos locais eles se solidarizariam com a miséria de quem foge
da matança que as falsas primaveras árabes, tão elogiadas e acalentadas por
meio mundo estupidificado, impulsionaram. Enfim, o que temos hoje choca-nos
como um murro no estômago mas exige-nos um passinho à frente da hipocrisia com
que vamos acomodando os dias. Perante a possibilidade de acolhimento de
refugiados, começam já a ouvir-se queixumes. Que vêm dar cabo do turismo, que
vêm roubar empregos, que vêm comer do que é nosso, estrangular um pobre país
que só quer comemorar a conquista de Ceuta em paz e sossego, deitado sobre a
memória dos seus heróis. Não é problema nosso, dirão uns. Que se amanhem no
país deles, dirão outros. E estes mesmos poderão ir expurgando a consciência com
gestos caridosos sazonalmente determinados, esmolas aos pobres, likes na coisa. Temos, porém, um problema. A caridadezinha não chega, a tadinhice não
solucionará o problema. Será mesmo fundamental, necessário, impor-se-á como uma
inevitabilidade sermos verdadeiramente solidários. E isso passará por acolher,
sob pena de, não o fazendo, inscrevermos mais uma vez na história a nossa
criminosa indiferença.
Sem comentários:
Enviar um comentário