quarta-feira, 2 de setembro de 2015

NOVAMENTE ŽIŽEK

A páginas tantas, Žižek questiona o legado de Mandela e aponta um diagnóstico cruel:
 
Na África do Sul, a vida miserável das camadas pobres permanece igual ao que era no apartheid, e o aumento de direitos políticos e civis é contrabalançado por uma insegurança crescente, violência e crime. A principal mudança foi a nova elite negra ter-se juntado à antiga classe dirigente branca.
 
Não questiono, mas posso partir de premissas diferentes para avaliar o legado de Mandela. A sua postura, os seus gestos, as suas palavras, as suas acções terão evitado banhos de sangue. Seria injusto esquecê-lo e reduzi-lo a problemas socioeconómicos que levarão muito tempo a ser resolvidos, se algum dia o forem. Mas Žižek consegue ser inquestionável quando coloca as questões certas. Partindo do caso absurdo ocorrido durante as cerimónias fúnebres do líder africano, recorda o intérprete para espectadores surdos que supostamente traduzia para língua gestual o serviço fúnebre. Supostamente porque, na realidade, veio a apurar-se posteriormente que aqueles gestos eram uma fraude. O homem em causa chamava-se Thamsanqa Jantjie, era (ou ainda é) esquizofrénico, fora preso pelo menos cinco vezes durante a década de 1990, acusado de violação, roubo, assalto, etc. Escapara sempre por ser considerado inimputável. Pergunta o filósofo:
 
E isto leva-nos ao cerne da questão: serão os tradutores de língua gestual realmente para aqueles que não têm a capacidade de ouvir a palavra falada? Não serão muito mais apropriados para nós — por nos fazer sentir bem observar o tradutor ao lado do orador, oferecendo-nos a satisfação politicamente correta de estarmos a fazer o que é correto: tomar conta dos desprivilegiados?
 
 
Slavoj Žižek, in Problemas no Paraíso - O Comunismo depois do Fim da História, trad. C. Santos, Bertrand Editora, Setembro de 2015, p. 157-161.

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