A páginas tantas, Žižek questiona o legado de Mandela e
aponta um diagnóstico cruel:
Na África do Sul, a vida miserável das camadas pobres
permanece igual ao que era no apartheid, e o aumento de direitos políticos e
civis é contrabalançado por uma insegurança crescente, violência e crime. A
principal mudança foi a nova elite negra ter-se juntado à antiga classe
dirigente branca.
Não questiono, mas posso partir de premissas diferentes
para avaliar o legado de Mandela. A sua postura, os seus gestos, as suas
palavras, as suas acções terão evitado banhos de sangue. Seria injusto esquecê-lo
e reduzi-lo a problemas socioeconómicos que levarão muito tempo a ser resolvidos,
se algum dia o forem. Mas Žižek consegue ser inquestionável quando coloca as
questões certas. Partindo do caso absurdo ocorrido durante as cerimónias
fúnebres do líder africano, recorda o intérprete para espectadores surdos que
supostamente traduzia para língua gestual o serviço fúnebre. Supostamente
porque, na realidade, veio a apurar-se posteriormente que aqueles gestos eram
uma fraude. O homem em causa chamava-se Thamsanqa Jantjie, era (ou ainda é)
esquizofrénico, fora preso pelo menos cinco vezes durante a década de 1990,
acusado de violação, roubo, assalto, etc. Escapara sempre por ser considerado
inimputável. Pergunta o filósofo:
E isto leva-nos ao cerne da questão: serão os tradutores
de língua gestual realmente para aqueles que não têm a capacidade de ouvir a
palavra falada? Não serão muito mais apropriados para nós — por nos fazer
sentir bem observar o tradutor ao lado do orador, oferecendo-nos a satisfação
politicamente correta de estarmos a fazer o que é correto: tomar conta dos desprivilegiados?
Slavoj Žižek, in Problemas no Paraíso - O Comunismo
depois do Fim da História, trad. C. Santos, Bertrand Editora, Setembro de 2015,
p. 157-161.
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