sexta-feira, 25 de setembro de 2015

FECHAR UMA JANELA


Esta fotografia, partilhada pela Sara na sua página de Facebook, traz-me muitas e boas memórias. Regresso a 2001, quando os Ventilan se reuniram pela primeira vez, por iniciativa do Nuno Moura, e a convite do Miguel-Manso, para celebrarem o encerramento da Taberna Toino da Cunha em Almeirim. Microfone e guitarra directamente ligados ao amplificador, o saxofone e os pífaros do Pedro Serpa tal como vieram ao mundo. Éramos todos mais magros (excepto o Pedro, cuja elegância se mantém inalterada) e o Nuno ainda não precisava de óculos para ler poemas como este:



VAI PARA CASA

Cais do Sodré de manhã, ela diz
para um homem: vai para casa, tomar banho,
desmaquilhar-te. O homem pergunta e ela responde sim,
que se notava até demais.

O homem encosta-se à caixa multibanco e dividem.

Ela também não quer mais, o homem pode beber o resto da lata,
matar o cigarro.

A beata sai do vento dos dedos como um berlinde, faz um fogo
no eléctrico parajado, o homem diz: viste como ela me levou
para o quarto, pela mão?

Vi, vi também 11 garrafas amarrotadas no meu caixote do lixo,
dois filtros tesos no cinzeiro, tu a entrares pela mão
no quarto dela.

As árvores do largo deixaram as toalhas na relva quente
e pincharam no rio, o homem disse: não viste,
mas ela sentou-me na sua cadeira mais rente,
disse para eu estar quieto que agora me ia pintar
e abriu um coração verde com um espelho em cima,
não viste.

Vi um riso. Vi terra amanhada por unhas manicuradas.
Não vi estas lágrimas.

A marreta de uns olhos fechados dirigiu a tangueta da clássica
dos meninos verdes – o coro das orcas, o tacto dos cegos
- o homem disse: que neve pura me limpe.

No pontão as árvores alouravam.

Um camarário de vassoura e atrelado susteu seu escarro,
passou a mão pela febre, puxou do baton.

Nuno Moura, in Soluções do Problema Anterior, capa de Maria Alcobre, composto e paginado por Manuela Perdigão, & etc, Abril de 1996, pp. 54-55.

Alguns anos depois, decorria o mês de Abril de 2005, os Ventilan “partiram em digressão” para o Porto. Na bagagem, algumas molduras preciosas com os originais que estiveram na origem das capas da & etc. Vítor Silva Tavares não foi, mas levámos de boleia mestre Rui Caeiro. Exposição na FNAC de Santa Catarina, apresentação memorável dos Ventilan com Rui Caeiro a permanecer no palco durante toda a actuação. Esta fotografia foi registada nesse dia. Quem estava na plateia era a poeta Inês Lourenço, que acabara de publicar Logros Consentidos. Capa actualíssima e poema muito a propósito:



Toponímia

Mudam-se os tempos. Já
não sabemos as matinais canções
nem habitamos vilas morenas.
Toleramos serventes de pedreiro louros,
de preferência não legalizados. Queremos
um grande apartamento em condomínio
fechado, um ferrari, uma piscina, um topo
de gama de uma coisa qualquer.

Temos ruas, temos praças e pontes
com nome de revolução. Como todos
os países temos hino — nação valente
imortal. Tivemos canela e diamantes,
santos, barregãs e dinastias de
tiranos e servos. Andámos muito
no mar, trocando rotas e poderes,
escravos, inquisições e cruzes.

Agora, neste estreito
quadrilátero, de onde saímos
e mal regressámos, sem índias nem
quinto império — salvou-se o manuscrito do
Luís Vaz, a nado — restam-nos a sardinha
e a conquilha — ao que consta cercadas
de barcos espanhóis — o bacalhau
que já não vem da Terra Nova, a memória
dos pescadores de baleias, esgotada a captura
nas ilhas.

Também temos o treze
de Maio, o negócio clandestino
das abortadeiras, a broa de Avintes,
os tintos, por enquanto, de marca e
o leitão da Bairrada e o Benfica e
o Sporting e o Futebol
Club do Porto.

Temos ruas, temos praças e
pontes com nome de revolução,
topónimos nebulosos que a distância
apagará. Apenas aquela rua
chamada Cantor Zeca Afonso
poderá surpreender o transeunte
se acrescentarem o aviso:

Nunca quis uma rua
só para si.

Inês Lourenço, in Logros Consentidos, capa de Pedro Proença, composto e paginado por Olímpio Ferreira, & etc, Março de 2005, pp. 47-48.


Nesse mesmo ano de 2005 o improvável aconteceu. Os Ventilan voltaram a reunir-se, desta feita no Museu de História Natural. O programa incluía mesas redondas, das quais nos abstivemos ou fomos inteligentemente excluídos, sobre os exageros do PREC. Organização: associação Abril em Maio. Foi a primeira vez que tivemos na plateia o Vítor Silva Tavares, que aguentou do princípio ao fim sem esboçar embaraço ou desconforto. O som estava péssimo, o ruído e o feedback sobrepunham-se aos versos, eu dei cabo de uma guitarra e o tipo da mesa de som não deve sequer ter reparado (como, muito provavelmente, não chegou sequer a reparar que estávamos ali). Voltámos a merecer a presença do Vítor Silva Tavares em 2013, aquando de uma actuação na Livraria Sá da Costa. A fotografia da Sara regista o momento. E já este ano, no mês de Abril, lá estava ele, O fã, na Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul. Estivemos sentados numa mesma mesa, trocámos algumas palavras sobre a Carbonária, reunimos esforços para fechar uma janela. Sobre esse dia, escrevi umas coisas no diário que não são para revelar. Mas ninguém me roubará a humilde alegria de um dia poder vir a contar aos netos: eu fechei uma janela com o Vítor Silva Tavares.

2 comentários:

Ana.crónica disse...

Que mensagem linda. Obrigada por ela.

Ana.crónica disse...

Que bonita mensagem. Obrigada por ela. :)