Uma fotografia, uma criança, um homem, uma criança morta
numa praia, um homem a pegar na criança, uma fotografia, uma imagem muitas
vezes partilhada, o choque, o choque, o choque. Ainda há não muito,
perorava aqui sobre o uso estúpido e abusivo de imagens de choque. Nunca as
utilizo porque, na realidade, choca-me mais o conhecimento ou até o desconhecimento de uma situação do que uma imagem enquanto representação de factos sempre subjectivos. O efeito produzido pela reprodução dessas
fotografias é contraproducente. Por exemplo, há tempos andava muita gente
chocadíssima com as imagens que chegavam da Palestina. Alguém quer agora saber
da Palestina? E Darfur? Quem quer saber do que se passa neste momento em Darfur? Será que a vida na Nigéria anda mais suave? São meros
exemplos, as imagens aparecem, registam, as multidões mostram-se muito chocadas
e depois vão à sua vida. Cumpriram o seu papel humano chocando-se, as pessoas solidarizam-se mostrando-se chocadas. E pronto. A
comunicação social é uma espécie de chocadeira de emoções e de indignação que
não serve para nada. Em vez de se chocarem com aquela imagem, as pessoas podiam
empenhar-se em pensar, discutir, conhecer, aprofundar, para depois não
cometerem os mesmos erros de sempre, as mesmas falhas de sempre, com a
reiterada indiferença e letargia de sempre. Por exemplo, que tal começarem a
organizar-se para receber e acolher refugiados? Podem juntar-se, formar centros
de acolhimento, pensar, pelo menos, em alternativas ao tempo perdido com
choques patéticos. Diria que o mundo é muito melhor e muito pior do que a
imagem da criança mostra. De resto, os milhares de corpos que andarão
a boiar nas águas do Mediterrâneo, milhares de corpos esquecidos, anónimos, que
jamais serão resgatados, fotografados, não são sequer representáveis naquela
imagem. O choque reside em imaginá-los e concluir que, por não serem vistos,
não contam, não servem, ninguém se chocará com eles. A situação representada pela imagem não é sequer nova, há anos que esta situação perdura com a complacência silenciosa de gente que nunca sentirá o choque do banco dos réus por não ter agido quando podia e devia. E isso é verdadeiramente
chocante, define bem a hipocrisia em que andamos mergulhados muito
provavelmente sem sequer darmos por isso. Então é assim: que tal começar por
uma grande manifestação nas ruas pelo acolhimento de refugiados? Quem dará o
primeiro passo? Um passo, digamos, para lá do choque.
7 comentários:
"Por exemplo, que tal começarem a organizar-se para receber e acolher refugiados?" Parece-me um bocado difícil começarem a organizar-se sem primeiro verem imagens que mostrem o que se passa.
Ainda precisa de mais? Quantos anos de imagens precisa? Quantos corpos a dar à costa? Anos e anos e anos e anos de imagens. Há quantos anos perdura esta tragédia? Quer fazer um álbum de fotografias ou quer ajudar realmente aquelas pessoas?
O editorial hoje do público a justificarem a publicação da fotografia: http://www.publico.pt/mundo/noticia/porque-publicamos-esta-fotografia-1706724
Estão a publicar a foto por ser uma criança de classe média branca? Se fosse negra não tinha impacto, apesar das palavras do Papa Francisco? E o mar é nosso? Estive mesmo a ler isto? Como é possível tanta estupidez em tão pouco espaço de texto?
" Quer fazer um álbum de fotografias ou ...". A quem diz isto nestas circunstâncias (a banalização do mal...) não há que fazer comentários. Só o silêncio.
O circo montado para fazer esquecer o essencial, Maria João. Lembraram-se agora que há criancinhas a morrer afogados no Mediterrâneo? Puta que os pariu mais a hipocrisia que os consome.
Acabei agora de ler isto: "Já não podemos olhar para o lado e ignorar.". Não continuei. Foda-se, foda-se, foda-se, mil vezes foda-se!!!!! Então mas até aqui podíamos olhar para o lado e ignorar? O que mudou?
Bom dia, Henrique
Ainda ontem comentava isto com umas pessoas amigas.
Como podemos ver todo este genocídio e nada fazer?
Porque não nos mobilizamos, vamos para a rua, contestamos tudo isto?
Ficamos impávidos e serenos a ver as tais fotos chocantes e passamos para a frente como se nada fosse? Somos todos cúmplices desta barbárie. É urgente fazer alguma coisa. Qualquer coisa. Tudo menos ficar parado a assistir de sofá!!!
Faz-me lembrar Timor em 1999. Só depois de muitos massacres, de muitas mortes, fomos para a rua manifestar-nos, fazer um cordão humano. Depois até de muitos Países se terem manifestado a sua solidariedade com Timor.
Urge fazer parar este "holocausto"
Um abraço
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