quinta-feira, 3 de setembro de 2015

CHOQUE

Uma fotografia, uma criança, um homem, uma criança morta numa praia, um homem a pegar na criança, uma fotografia, uma imagem muitas vezes partilhada, o choque, o choque, o choque. Ainda há não muito, perorava aqui sobre o uso estúpido e abusivo de imagens de choque. Nunca as utilizo porque, na realidade, choca-me mais o conhecimento ou até o desconhecimento de uma situação do que uma imagem enquanto representação de factos sempre subjectivos. O efeito produzido pela reprodução dessas fotografias é contraproducente. Por exemplo, há tempos andava muita gente chocadíssima com as imagens que chegavam da Palestina. Alguém quer agora saber da Palestina? E Darfur? Quem quer saber do que se passa neste momento em Darfur? Será que a vida na Nigéria anda mais suave? São meros exemplos, as imagens aparecem, registam, as multidões mostram-se muito chocadas e depois vão à sua vida. Cumpriram o seu papel humano chocando-se, as pessoas solidarizam-se mostrando-se chocadas. E pronto. A comunicação social é uma espécie de chocadeira de emoções e de indignação que não serve para nada. Em vez de se chocarem com aquela imagem, as pessoas podiam empenhar-se em pensar, discutir, conhecer, aprofundar, para depois não cometerem os mesmos erros de sempre, as mesmas falhas de sempre, com a reiterada indiferença e letargia de sempre. Por exemplo, que tal começarem a organizar-se para receber e acolher refugiados? Podem juntar-se, formar centros de acolhimento, pensar, pelo menos, em alternativas ao tempo perdido com choques patéticos. Diria que o mundo é muito melhor e muito pior do que a imagem da criança mostra. De resto, os milhares de corpos que andarão a boiar nas águas do Mediterrâneo, milhares de corpos esquecidos, anónimos, que jamais serão resgatados, fotografados, não são sequer representáveis naquela imagem. O choque reside em imaginá-los e concluir que, por não serem vistos, não contam, não servem, ninguém se chocará com eles.  A situação representada pela imagem não é sequer nova, há anos que esta situação perdura com a complacência silenciosa de gente que nunca sentirá o choque do banco dos réus por não ter agido quando podia e devia. E isso é verdadeiramente chocante, define bem a hipocrisia em que andamos mergulhados muito provavelmente sem sequer darmos por isso. Então é assim: que tal começar por uma grande manifestação nas ruas pelo acolhimento de refugiados? Quem dará o primeiro passo? Um passo, digamos, para lá do choque.

7 comentários:

Anónimo disse...

"Por exemplo, que tal começarem a organizar-se para receber e acolher refugiados?" Parece-me um bocado difícil começarem a organizar-se sem primeiro verem imagens que mostrem o que se passa.

hmbf disse...

Ainda precisa de mais? Quantos anos de imagens precisa? Quantos corpos a dar à costa? Anos e anos e anos e anos de imagens. Há quantos anos perdura esta tragédia? Quer fazer um álbum de fotografias ou quer ajudar realmente aquelas pessoas?

MJLF disse...

O editorial hoje do público a justificarem a publicação da fotografia: http://www.publico.pt/mundo/noticia/porque-publicamos-esta-fotografia-1706724
Estão a publicar a foto por ser uma criança de classe média branca? Se fosse negra não tinha impacto, apesar das palavras do Papa Francisco? E o mar é nosso? Estive mesmo a ler isto? Como é possível tanta estupidez em tão pouco espaço de texto?


Anónimo disse...

" Quer fazer um álbum de fotografias ou ...". A quem diz isto nestas circunstâncias (a banalização do mal...) não há que fazer comentários. Só o silêncio.

hmbf disse...

O circo montado para fazer esquecer o essencial, Maria João. Lembraram-se agora que há criancinhas a morrer afogados no Mediterrâneo? Puta que os pariu mais a hipocrisia que os consome.

hmbf disse...

Acabei agora de ler isto: "Já não podemos olhar para o lado e ignorar.". Não continuei. Foda-se, foda-se, foda-se, mil vezes foda-se!!!!! Então mas até aqui podíamos olhar para o lado e ignorar? O que mudou?

panaceia disse...

Bom dia, Henrique

Ainda ontem comentava isto com umas pessoas amigas.
Como podemos ver todo este genocídio e nada fazer?
Porque não nos mobilizamos, vamos para a rua, contestamos tudo isto?
Ficamos impávidos e serenos a ver as tais fotos chocantes e passamos para a frente como se nada fosse? Somos todos cúmplices desta barbárie. É urgente fazer alguma coisa. Qualquer coisa. Tudo menos ficar parado a assistir de sofá!!!
Faz-me lembrar Timor em 1999. Só depois de muitos massacres, de muitas mortes, fomos para a rua manifestar-nos, fazer um cordão humano. Depois até de muitos Países se terem manifestado a sua solidariedade com Timor.
Urge fazer parar este "holocausto"
Um abraço