terça-feira, 27 de outubro de 2015

DÁDIVAS DE J. W. GOETHE

XÉNIAS MANSAS


Ille velut fidis arcana sodalibus olim
credebat libris, neque si male cesserat usquam
decurrens alio, neque si bene; quo fit ut omnis
votiva pateat veluti descripta tabella
vita senis.

Horácio, Sermones, II, 1 v.30 e.c.

*

Quem vive na história do mundo,
Pelo instante se há-de reger?
Só quem aspira e olha os tempos bem fundo
É digno de falar e escrever.

*

Um velho é sempre um rei Lear, amigo!
Os que contigo trabalharam e lutaram
Resolveram partir;
Os que contigo amaram e sofreram
A outro lugar foram parar;
A juventude vive para si, consigo,
E estultícia seria pedir:
Anda, envelhece comigo.

*

De homens santos e de pensamento
Nunca recusei o ensinamento.
Mas tinha de ser curta a lição,
Não me agrada a prolixa oração:
A que devemos, mais que tudo, aspirar?
A conhecer o mundo e não o desprezar.

*

«Como consegues suportar tão calmo
A arrogância da juventude instável?»
Insuportáveis seriam, de facto,
Se eu não tivesse sido também insuportável.

*

Haverá conversa sem falsidade
Mais ou menos disfarçada?
Um tal guisado de mentira e verdade
É o prato que a mim mais me agrada.

*

Onde mais contradições houver,
É por aí que mais gosto de andar;
Ninguém está disposto a conceder
— Curioso! — ao outro o direito de errar.

*

De ideários e idealismos,
Que levo quando me for?
Nunca fui escravo de Ismos,
Fui sempre o eterno amador.

*

«Tão calado e pensativo!
Tens algum problema? Qual?»
Eu estou satisfeito, amigo,
Mas assim sinto-me mal!

*

Liberdade, doce, da imprensa,
Finalmente rejubilo!
Nas feiras marcas presença
In dulci jubilo.

*

Vamos imprimir sem peias,
Tudo e todos dominar;
Mas não venha com ideias
Quem como nós não pensar.

*

Que vantagens e frutos vos oferece
A sagrada liberdade de impressão?
Um sintoma já, seguro, aparece:
O desprezo da pública opinião.

*

Vós, poetas, sois mansos
Nas alturas que convém!
Eles vão domar-vos todos —
Ao Shakespeare também!

*

Se eu conhecesse do Senhor a via,
Em verdade, de bom grado a seguia;
Se à casa da Verdade fosse dar,
Por Deus vos juro que a não ia deixar.

*

Virar do avesso é ilusório:
Alegremente viramos
A meia ao contrário,
E assim a usamos.

*

Nada é mais sensível que o passado;
Pega-lhe como em ferro incandescente:
E num instante ter-te-á provado
Que também vives num tempo escaldante.


Se os nossos olhos não fossem solares,
Nunca o Sol poderiam ver;
Se não tivéssemos de Deus os poderes,
Como nos iria o divino extasiar?

*

O que em mil livros, no papel,
Verdade ou lenda te parecer,
É uma torre de Babel
Se o amor o não quiser unir.

*

Deixai as xénias mansas em acção,
Que não se dobra o poeta, em verdade!
No Werther louco não tivestes mão,
Pois vede agora como é louca a idade.

*

Porque agrada, neste mundo moderno,
A anarquia tanto a este meu génio?
Se cada um vive como lhe apraz,
Também a mim isso jeito me faz.
Deixo que cada um faça o que quer,
Para também eu a meu gosto viver.

*

«Ela enganou-te o tempo que quis,
Agora vês que era pura ilusão.»
Conheces tu a realidade? Diz:
Foi menos minha por essa razão?

*

Vede como vou vivendo,
Aceitai-me, tal e qual;
Há quem curta o sonho dormindo,
Os meus, pu-los no papel.

*

Une-nos muito a religiosidade,
E ainda mais a incredulidade.

*

Verás como erram os homens inteligentes,
Nas coisas, claro, em que são incompetentes.

*

Ó críticos miudinhos,
Não piqueis tudo miúdo,
Que os poetas mais mesquinhos
São vossos mestres em tudo.

*

Cometem um dos velhos pecados:
Tomam o cálculo por invenção, coitados!

*

O poeta não ofende,
Lançado em seu voo, sozinho;
Se a tua ideia é diferente,
É bem largo este caminho.

*

A estatura vem-me do pai,
Mais a seriedade na vida;
O ar jovial é da mãe,
E a fantasia desmedida.
Do bisavô conquistador
Alguma coisa me ficou;
A bisavó gostava de ouro,
Eu também atreito lhe sou.
Se do todo não há jeito
De os elementos separar,
O que há então neste sujeito
Que original possa ser?

*

Como irei partilhar
A vida entre fora e dentro, 
Se a todos tudo quero dar,
Para viver sob um só tecto?
Toda a vida tenho escrito
como penso, como sinto,
e assim, meus caros, me divido,
Sou sempre um só, e não minto.

*

«Como conseguiste tu
A este ponto chegar?»
Meu filho, eu só fui sensato:
Nunca pensei no pensar.

*

Uma réstia de honra, um pouco de fama,
Como isso vos mata, como vos agrada!
Mas eu, se não fosse o que o mundo me chama,
Se não fosse Goethe, então... antes nada.

*

Estais loucos? Que quereis com esse jeito
De o velho Fausto renegar?
É um mundo, o diabo do sujeito
Que tantos contrários pôde juntar.

*

As belas mulheres, velhas e meninas,
Não foram feitas para sofrer,
E se tu, nobre herói, não o empinas,
Cá estão os tansos para as aquecer.

*

Amor e honra e outras coisas que tais —
Não te apoquentes, deixa dizer quem diz!
Uma verga às direitas, e não mais,
É quanto basta para a mulher ser feliz.

*

E que nos resta da vida
Quando tudo se desfaz,
Quando a honra está perdida
E o esforço pouco nos traz?
Mas nada abaixo te deita
Se, sempre co' a morte à bica,
Seguires, fiel, a receita:
Primeiro copos, depois crica!

*

Irão votar tanto tempo, e como sacos
Rotos palrar — voltamos aos cossacos:
Livraram-nos do tirano, é verdade,
E inda nos vão livrar da liberdade.

*

A mulher só ao marido deve dar gozo, eu sei.
Mas dessa ando à procura, e inda não encontrei.

*

Que seja o diabo má rês e coisa feia
Não me convenço, nem de boca amiga:
Pois um sujeito que toda a gente odeia
Há-de ter que se lhe diga.

*

Epitáfio
Composto por A.v.I.

Muita coisa ele viu bem, já se vê,
Mas outra coisa devia ter querido.
Foi lacaio de príncipes: porquê?
Nosso lacaio deveria ter sido.


J. W. Goethe (Frankfurt am Main, 28 de Agosto de 1749 - Weimar, 22 de Março de 1832), in Obras Escolhidas de Goethe - Poesia, selecção, tradução, prefácio e notas de João Barrento, Círculo de Leitores, Maio de 1993, 191-197.

Nota: As xénias (etimologicamente: «presentes», «dádivas»), poemas satíricos que Goethe havia já escrito de parceria com Schiller em 1797 (esta primeira série foi então publicada no número desse ano do Musenalmanach), são retomadas na última fase pelo poeta (que as vai escrevendo a partir de 1814), e apresentam-se agora sob a designação de «mansas» (na verdade, uma contradictio in adiecto), num segundo momento deste tipo de intervenção através da escrita epigramática. As xénias mansas, que Goethe escreve às centenas, foram publicadas num primeiro conjunto de seis secções entre 1820 e 1827, a que a edição de última mão acrescenta mais três grupos. Esta segunda série de xénias tem um tom menos agressivo que a primeira, diversifica as formas utilizadas (as de 1797 foram todas escritas em dísticos) como faziam as primeiras, à elite cultural da nação. A epígrafe de Horácio refere-se ao poeta satírico Gaio Lucilio (muito lido pelo Goethe velho), e diz: «Ele confiava os seus segredos pessoais aos livros como a amigos fiéis, e não procurava outro refúgio, nem nas boas nem nas más horas; por isso, toda a vida do velho se apresenta aí como se fosse pintada num quadro votivo.»

2 comentários:

Inév Vie disse...

fui caindo enquanto lia, paulada após paulada,
de quando em vez erguendo-me
mas porra, de novo outra cacetada.
Acabei tombado, massacrado, arrasado, feliz.


obrigado pela partilha
Inév

hmbf disse...

Gosto especialmente destes dois:

Livraram-nos do tirano, é verdade,
E inda nos vão livrar da liberdade.