De vez em quando, acontece. E raramente vêm sós. Refiro-me às
boas surpresas. O nome de João Paulo Esteves da Silva (n. 1961) será mais
familiar a quem esteja atento ao universo musical português, pelo que foi com
surpresa que recebemos a notícia da sua estreia literária com um pequeno volume
simplesmente intitulado Trinta e quatro sonetos e trezentas e cinco
redondilhas (Douda Correria, Novembro de 2014). Na mesma editora, alguns meses
depois, publicou-se o livro Teoria do Um – vol. I (Douda Correria, Março de
2015), do poeta israelita Mordechai Geldman (n. 1946), com tradução de João
Paulo Esteves da Silva. Já tão surpreendente não será esta ponte com a cultura
judaica, levada outrora a cabo pelo músico no domínio da sua arte primeira com
a confissão de ser «um estudioso da língua hebraica» (Público, 2007). A tradução
de Mordechai Geldman surge, precisamente, a partir da edição hebraica original,
o que, de algum modo, enriquece o pequeno volume.
Surpreendentes são os sonetos e as redondilhas do autor
português, opções formais clássicas no interior das quais se processam improvisos
de linguagem assaz modernos. Quem conheça minimamente o seu percurso musical
verificará existir uma continuidade entre a revisitação da tradição popular a
partir de conceitos musicais urbanos e o aproveitamento de formas poéticas tradicionais
para a expressão de cenas quotidianas que, em grande medida, afastam tanto os
sonetos como as redondilhas do lirismo dos chamados grandes temas. Nos sonetos de João
Paulo Esteves da Silva “o grande tema” é a condição existencial daquele que
sente a náusea do seu tempo, seja quando envereda pela declaração de uma espécie
de misantropia do vate deslocado, seja quando lança um olhar sobre o país tendo
como suporte elementos diversos da vida quotidiana.
Mas algo se esconde debaixo dessa fachada que os versos
iluminam, um cansaço que a poesia remedeia: «espero uma frase que abençoe; / que se pareça com uma almofada». O poeta sofredor que habita frequentemente a
tradição portuguesa vê-se aqui suplantado pelo «gosto de escrever», um gosto
que vai cedendo às memórias (vãs?), penetra os cambiantes do sonho, vagueia com
humor pela cidade (Lisboa) e faz surdir o poema de um ponto onde a imagem
fotográfica de quem vê se funde com a música de quem lê:
Rostos cruzados em aeroportos,
restaurações duma carta rasgada,
adeuses para sempre, para nada,
são deste género agora os meus desportos;
soprar as cinzas, acordar os mortos,
rever, por baixo dos degraus da escada,
a cela sem água canalizada
da porteira com olhos semimortos;
e corro apenas o olhar, cansado,
pelo futuro. Em questões de higiene:
suar as estopinhas, mentalmente,
exercitar os glúteos do passado.
Deixo escapar o momento presente
sem ter remorsos. Não pratico zen.
Não é forçado notar uma aproximação temática, ou pelo menos
de tom, com a poesia de Mordechai Geldman, poeta mais inventivo de um ponto de
vista formal, mas não menos arreigado à paisagem quotidiana onde vai encontrar
a matéria para os seus poemas. Servi-me do termo matéria no mesmo contexto em
que é aplicado pelo tradutor na introdução, ou seja, enquanto estímulo do gesto versejador. Geldman nasceu num campo de refugiados em Munique, filho de
sobreviventes ao Holocausto. A família emigrou para Tel Aviv em 1949, cidade
onde o poeta se fixou. Com formação nas áreas da psicologia e da literatura, tem
desenvolvido, igualmente, trabalhos no universo das artes plásticas. Esta multidisciplinaridade
acaba por se reflectir na sua poesia, a qual absorve e assimila os dados da
experiência sem que a eles se submeta enquanto mediador.
A figura demiúrgica do poeta não é alheia a este sentido da
arte enquanto reveladora de uma «alma mais secreta» ou, se quisermos, enquanto
potenciadora de uma visão que conduz a uma consciência mais profunda, logo
menos superficial, da realidade. A essência da poesia, a natureza do poeta, a
função do verso, são, pois, questões que estes poemas projectam a partir de vivências
onde se misturam tanto a consciência interna do tempo (com o tema da morte no
horizonte) como uma fenomenologia do espírito, para usar a expressão hegeliana,
capaz de oferecer vida aos objectos e desse exercício alquímico retirar uma música
reconfortante. Curiosamente, tanto em João Paulo Esteves da Silva como em
Mordechai Geldman a solidão é uma palavra recorrente. Neste caso, até de um
modo algo cómico: «já o solteirão Geldman / não receia o par / não é 1 com medo
de 2 / ele próprio é 2: solteiro e não solteiro».
Estamos no terreno da cabala doméstica, onde na cama que acolhe 2 tanto podemos encontrar 1, como 2, como tantas vezes 0, e dentro de
esse 1 entender desdobramentos que o tornam 2 em 1. Pelo que, na cama onde estão 2 podem, em boa verdade, estar 4. Ou nenhum, ou simplesmente 2, ou apenas 1. De resto, a vida familiar vem
à tona nestes versos com mães exaustas, filhos cheios de possibilidades, festas
cujo ritual último será, inevitavelmente, o do pó e o das cinzas. Mas onde o fim
poderia motivar negrume, angústia, desesperança, nós vislumbramos estranhas
correspondências entre a semente e o cadáver, o florir e o perecer, com uma luz
que incide sobre o medo da morte, sobre a solidão, e assume a existência como
uma espécie de sombra da vida que o poema, no sentido global que lhe podemos
oferecer de Arte, permite espreitar:
Música
Levantei-me feliz
e o facto de não teres vindo ontem à noite
deixou de me incomodar
como quando baixa a febre
e consolei-me com a flauta que tenho na cabeça
e com o saber que sou músicos
atento à música do mundo
com um prazer viciante
ninfomaníaco de música
não só de trompetes de búzios
ou marulho oceânico de conchas
também de bandos misturados de pássaros, insectos e cascatas
e do silêncio dos operários junto às máquinas impressoras
e de orquestras e de leões e dos rugidos do sol
e etc. e etc. até do grito do vazio duma flauta zen
ou de um apito de árbitro de basquetebol
ou do explodir da água no corpo liso do nadador
o rio da música do mundo
passa na minha janela
e chama as minhas jangadas de papel que naveguem
pelas ladeiras da corrente até ao mar a gemer do abismo
e o meu amor por este género de arte
também me fere
porque eu sou somente
num sítio em que as palavras são somente
e em momentos raros elas são em si mesmas
sonata para flauta solo
ou sintetizador de vozes do universo
um grito que queima os ouvidos
e te estilhaça o cérebroNota: na caixa de comentários, Rui Almeida, sempre atento, informa que este não é o livro de estreia de João Paulo Esteves da Silva. Agradeço a informação.
2 comentários:
Esse livro não é a estreia de João Paulo Esteves da Silva. Em 2002, já tinha publicado dois livros, ambos na editora Amores Perfeitos: 'Ainda menos, revista de poesia, ensaio e ficção' (apresenta-se como revista, mas na verdade é um conjunto de textos apenas de um autor) e 'Notas à margem'.
Não fazia a mínima ideia. Obrigado, Rui. Tens isso?
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